Eu sentia o calor das chamas da fogueira, mesmo estando afastado com o restante da multidão. A mulher já não gritava mais, não sabia dizer se ela estava inconsciente, ou se já estava morta naquele momento. Eu só agradecia à Deus que os gritos pelo menos cessaram, ou melhor, não sabia se deveria agradecer, para ser bem sincero... pois os homens que a torturaram e a queimaram viva se diziam serem os "Homens de Deus".
Éramos obrigados a permanecer na praça até que todo o seu corpo fosse consumido pelas chamas e não sobrasse nada além de ossos e cinzas. O Padre permanecia em frente a catedral, orando em latim. Algumas pessoas faziam as suas próprias preces, talvez pela alma da pobre coitada que era queimada em praça pública, ou por medo de um dia estarem no lugar dela.
Particularmente, eu não sabia muito sobre aquela mulher, nem ao menos o seu nome. Era uma mulher muito bonita, no entanto, de pele branca e longos cabelos que formavam ondas douradas, seus olhos eram como a grama na manhã de primavera.
Tudo começou no dia 17 de março, quando minha mãe - uma católica muito fervorosa - caiu doente. O Padre e alguns familiares mais próximos oraram por ela, porém, de nada adiantou, a fé não iria salvar a sua vida, mas ela continuava lutando. Minha mãe não era uma pessoa ruim, mas não discordava de nada que a Santa Igreja dissesse. E por maiores que fossem os teus erros, ninguém merecia morrer daquela forma.
Haviam boatos de que em toda a Europa surgia uma doença que se espalhava rapidamente, mas, que ainda não havia chego em nossa pequena cidade até aquele momento. Minha mãe certamente havia contraído aquela doença, já faziam dois dias que estava acamada, e eu não via outra escolha a não ser tentar encontrar uma mulher que se dizia "Médica". Então, fui atrás dessa pessoa, eu só queria salvar a minha mãe do pior, ela era tudo o que eu tinha.
Eu já estava fora de casa antes mesmo do sol nascer no dia 20 de Março, mas não fui para a feira onde eu trabalhava, atravessei a cidade para uma região mais nobre, e lá encontrei uma bela casa com paredes claras como a neve e uma porta inteiramente ornamentada - aquela porta deveria valer mais do que ganhamos em um ano inteiro -. Bati três vez e aguardei, e então, a mulher mais bela que eu já havia visto me atendeu.
- Você é a pessoa que todos chamam de Médica?
Ela me encarou seriamente por um momento, talvez se perguntava se poderia falar a verdade para alguém como eu. Não se podia confiar em ninguém naqueles tempos obscuros.
- Depende, quem lhe disse isso, garoto?
- Olha, só quero saber se pode ou não me ajudar. Minha mãe está muito doente! Ela está vomitando e tendo convulsões, há manchas escuras em sua pele que sangram, eu não sei mais a quem pedir ajuda, eu só quero salvá-la! - Seu olhar sério me dizia para continuar a falar. - Nós não temos muitos bens, mas eu posso lhe servir de qualquer forma, se você conseguir ajudá-la!
A mulher permaneceu parada um tempo, me fitando com seus olhos profundos e hipnotizantes. Parecia pensar se deveria ou não me ajudar. E por fim, me mandou entrar.
Eu passei pela porta, enquanto ela ficou um tempo na frente de sua casa olhando para os lados, se certificando de que ninguém me seguia ou nos observava, até que me acompanhou.
Sua casa era tão linda quanto o interior da catedral, mas não foi isso que me chamou a atenção. Ela me levou até uma passagem que descia para um porão, e naquele momento eu me senti entrando em um mundo totalmente diferente da realidade em que eu vivia.
Haviam cilindros de metal com líquidos que borbulhavam, grandes recipientes de vidro guardavam animais mortos, mergulhados em algum tipo de solução; em uma parede havia centenas de plantas diferentes. O que mais me intrigou foram algumas esferas de metal com anéis em volta, contendo outras bolas menores que circulavam lentamente em torno da maior.
- É fascinante! Você é uma cientista!
- Sim, - disse a mulher enquanto pegava alguns dos objetos de vidro e uma grande agulha de metal - mas isso vai ser o nosso segredo.
Ela estava certa, a Igreja estava caçando qualquer pessoa que se denominasse "médico, cientista, alquimista". Eram palavras proibidas de se pronunciar em público. Várias prisões já tinham ocorrido, e duas execuções até então.
- Você teve contato com a sua mãe? Digo, com suas feridas, saliva, vômito?
- Eu tive que limpar o vômito dela algumas vezes, mas, não há o que fazer quanto as fezes e urina, ela está fazendo tudo na cama.
- Hmm... - A mulher se aproximou de mim com uma grande agulha de metal atrelada à um estranho cilindro com uma espécie de mecanismo de mola - Isso vai doer, me dê seu braço.
Relutante, eu estiquei o meu braço e a médica amarrou uma tira de pano com muita força, minhas veias saltaram. Ela me espetou com a agulha, enfiando-a por completo em minha pele, a dor foi excruciante e eu me segurei para não gritar. Após o meu sangue escorrer pelo furo da agulha, ela segurou o cilindro com uma mão, e com a outra puxou o mecanismo de molas, e eu pude ver o meu sangue enchendo o recipiente. Não demorou muito, e a dor fora somente no momento em que ela me espetou, logo o pequeno cilindro estava cheio do líquido viscoso e vermelho.
A cientista retirou a agulha de meu braço e me pediu para tapar o furo com o pano até que parasse de sangrar, ela despejou o que eu achei que seria água por cima do pano, mas aquele líquido transparente com um forte odor parecia queimar o local onde havia sido espetado, uma lágrima escorreu de meu olho.
- Isso vai levar só um instante - disse enquanto ia até uma mesa de metal com o recipiente contendo o meu sangue.
- O que está fazendo?
- Se teve contato com a infecção de sua mãe, é provável que logo estará infectado também. Estou somente checando.
- Entendi...
Fiquei observando a cientista misturar o meu sangue junto de outros líquidos de cores curiosas. Busquei então me distrair com as infinidades de objetos que ela tinha naquele porão, formas e materiais tão diferentes umas das outras. Não podia imaginar o que a Igreja faria se descobrisse este local. Ao mesmo tempo que temia por ela, eu me fascinava com tudo aquilo, e pensava acerca de todo o conhecimento que aquela mulher deveria ter. Me imaginei por um único momento estar no lugar dela, mas fui consumido pelo medo de ser pego. De nada adiantava ter à vontade se no fundo eu não teria coragem.
- Você está bem, não há sinal de infecção, por enquanto - disse com a voz calma e suave - Vou separar meus medicamentos. Onde você vive?
- Na Baixada dos Musgos.
A mulher me encarou e suspirou profundamente.
- Não sei se é uma boa ideia eu ir até lá, as pessoas daquela região são muito... - relutou em falar.
- Muito o que?
- Católicas - concluiu de forma ríspida.
- Por favor, eu lhe imploro! - Me ajoelhei diante da médica - Eu faço qualquer coisa! Lhe servirei como desejar! As únicas coisas que posso oferecer são minha vida, gratidão e servidão!
A mulher tornou a suspirar, desta vez, de forma impaciente.
- Tudo bem, eu lhe ajudarei então. Irei no meio da noite, quando as ruas estiverem desertas. Você sabe o que eu sou, a Igreja já está de olho em mim. Tentamos ajudar as pessoas e o que recebemos em troca é tortura e a morte pelo fogo, não há pagamento à altura disso.
Eu não tinha quaisquer palavras para responder, era óbvio que eu estava pedindo demais dela, não a conhecia, nem seu nome eu sabia. Tentava pensar em algo inteligente para respondê-la, mas nada me vinha à mente.
- Agora você precisa ir. Lhe encontrarei após a meia-noite. Deixe duas bacias com água quente e fria preparadas para quando eu chegar. - A mulher falava enquanto me empurrava em direção a saída. - Me espere do lado de fora de sua casa.
-Tudo - a porta se fechou em meu rosto - bem...
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Benevolência entre as chamas da Fé
Historical FictionPeste, Inquisição e guerra. O que tudo isso tem em comum? A morte. Uma mulher cai doente, sendo a primeira vítima da Peste Negra em uma pequena cidade francesa, e seu filho busca a ajuda de uma cientista procurada pela Santa Igreja para salvar a vid...