Após ter sido expulso da casa da cientista, retornei ao meu lar, e lá passei o dia cuidando de minha mãe que estava numa situação deplorável. Seu peito estava coberto de vômito, ela tossia sem parar, algumas vezes com sangue. O cheiro de urina e fezes que se acumulavam nos últimos dois dias estava ficando muito mais forte do que eu podia suportar. As vezes ela tentava coçar suas manchas escuras na pele, mesmo quando estava inconsciente, e isso fazia as feridas sangrarem. Eu limpava o sangue viscoso que escorria, mas isso parecia irritar ainda mais os ferimentos.
As horas passaram lentamente naquele dia, agradeci à Deus quando a noite veio e as corujas e grilos começaram a cantar em sintonia. Compareci à Santa Missa daquela noite, orei pela saúde de minha mãe, e para que a sua futura salvadora não me abandonasse. Eu não a julgaria se ela decidisse por não ir, afinal, quem arriscaria a própria vida para fazer algo que a Igreja não aprovaria?
Ao chegar em casa, comi uma sopa de legumes, e tentei alimentar minha mãe, que mesmo devagar, conseguiu comer um pouco. Talvez minhas preces foram atendidas, fora a primeira refeição que ela não vomitou desde que adoecera.
Fui até o poço que ficava não muito longe da rua em que morávamos, e trouxe para casa dois baldes de água. Tive certa dificuldade para acender a fogueira, algo que minha mãe era muito boa em fazer, mas consegui aquecer a água que a médica havia solicitado.
Permaneci do lado de fora de casa, observando a rua completamente deserta, já perdendo as esperanças de que ela compareceria, no entanto, para a minha surpresa, a mulher apareceu. Ela descia a rua com o mesmo vestido bege daquela manhã, usando um lenço na cabeça que lhe cobria parcialmente o rosto, e trazia consigo uma mala e uma bolsa maior.
- Pontual! - disse, ainda surpreso.
- Pensou que eu não viria?
- Eu sabia que ia vir!
Ela deu um sorriso, enquanto eu abria a porta de minha casa para ela entrar. Não era a casa mais confortável do mundo, e de longe não era a mais bela, no entanto, agradecíamos por ter onde morar, foi o que meu pai conseguiu nos deixar antes de partir para a guerra contra a Inglaterra, anos atrás.
O odor não parecia incomodar a mulher, que se dirigiu até a cama onde estava a minha mãe. Ela abriu a sua mala e retirou um par de luvas de couro, um par de óculos com várias lentes de aumento, e alguns outros utensílios que eu não tinha ideia do que eram, muitos com lâminas e agulhas. Minha mãe estava inconsciente desde o jantar, e não parecia sentir as apalpadas que a médica lhe dava.
- Vou precisar que você saia, não irá querer ver isso. - Ela se virou para mim. - Será muito sangrento, nojento e doloroso.
Eu não queria sair de perto da minha mãe, porém, não teria estômago o suficiente para assistir, mesmo sem ter ideia do que ela faria.
- Tudo bem. Eu estarei atrás de casa - disse, enquanto a cientista concordou. Saí pela porta de trás, que dava acesso à nossa pequena horta nos fundos.
Tentei ocupar minha mente com outra coisa durante aquela noite, cuidando dos nossos cultivos, colhendo os que estavam prontos para serem vendidos, e preparando a terra para novos plantios. Às vezes eu podia escutar alguns recipientes da médica se colidindo, ou ela mexendo em sua bolsa, e até mesmo alguns gemidos de minha mãe, era o que mais me incomodava.
Acordei com os cutucões da cientista quando os primeiros raios de sol tentavam iluminar a escuridão. Me espantei ao perceber que o vestido da mulher estava cheio de sangue, assim como o seu avental que havia perdido a sua cor original.
Entrei às pressas em casa, minha mãe não estava mais em sua cama, mas sim sobre a mesa de madeira. As manchas escuras em sua pele estavam bem mais claras, a maioria estava coberta por algum tipo de musgo; sua aparência não estava pálida como antes. Corri para tocar o seu rosto e abraçá-la, quando a médica me segurou pelo ombro.
- Não, ela precisa descansar. Seus ferimentos ainda irão cicatrizar.
- O que você fez?
A mulher foi retirando o avental e se despindo de seu vestido, trocando por um outro mais limpo. Enquanto se vestia, ia me dizendo o que tinha feito.
- As ervas são de grande ajuda. Sabendo as combinações corretas, pode-se até trazer uma pessoa de volta dos mortos. O que eu fiz foi drenar a maior parte do sangue infectado de sua mãe.
- Drenar? - perguntei, sem saber o significado disso.
- Assim como eu fiz com você, eu tirei o sangue dela, mas em maior quantidade, e o purifiquei, devolvendo-o para sua mãe. A doença se espalha basicamente pelo sangue, o que afeta seus órgãos, lhe matando lentamente. Bem, não há muito o que eu explicar mais, você não entenderia o resto. O importante é que ela irá viver. - Ela retirou dois fracos de sua bolsa e me entregou - Dê à ela uma colher desse remédio por dia, você também deve tomar, irá evitar que fique doente como ela ficou.
Quando terminou de falar, a mulher já havia trocado sua roupa e guardado todos os seus utensílios. Eu estava pasmo com tudo que ela havia me dito, seu conhecimento era surpreendente.
- Eu não sei como agradecer...
- Não precisa. Tome esta moeda, - ela me entregou uma moeda de prata - vá até o mercado e compre um colchão novo com isso, talvez você consiga comprar alguma coisa a mais. Sugiro queimar este colchão velho longe daqui e jogar fora tudo que tenha sangue, saliva, urina e vômito de sua mãe. Para evitar que a infecção se espalhe pela cidade.
- Eu... Eu não sei como agradecer, de verdade.
- Como eu falei, não há necessidade. Ela ficará uns dois dias neste estado, não a incomode. Quando ela acordar, e ter a certeza de que ela está bem, vá até a minha casa para conversarmos acerca de como pode me servir.
- Tudo bem, muito obrigado!
- Agora, se me der licença. - A mulher colocou sua grande bolsa atravessada em seu corpo, pegou sua mala do chão e foi em direção à porta, saindo enquanto eu ainda observava minha mãe.
Corri até a saída de casa enquanto ela já subia a rua apressadamente.
- Eu não sei seu nome! - gritei.
- E nem precisa saber. - A mulher se virou para mim e deu um sorriso.
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Benevolência entre as chamas da Fé
Fiksi SejarahPeste, Inquisição e guerra. O que tudo isso tem em comum? A morte. Uma mulher cai doente, sendo a primeira vítima da Peste Negra em uma pequena cidade francesa, e seu filho busca a ajuda de uma cientista procurada pela Santa Igreja para salvar a vid...