Enquanto minha mãe permanecia dormindo, cuidei dela e da casa, vendi legumes na feira, frequentei a Igreja, algumas vezes encontrei a própria cientista na Missa, o que achei estranho.
No dia 23 de março minha mãe finalmente acordou, exatos dois dias depois, como a médica me havia dito. Até que ela estava bem, mas muito confusa, aumentando sua confusão quando comecei a contar tudo o que aconteceu. No entanto, escondi toda a verdade dela, não lhe disse que ela havia sido tratada por uma médica, ou ela iria correndo até a Igreja para informar que havia sido curada por uma bruxa. Falei que em certa noite, após retornar da Missa, me ajoelhei em frente a ela e orei sem parar, e quando dormi, acabei sonhando com um anjo que entrara em nossa casa e a curava.
- E como era este anjo, meu filho? - perguntou com sua voz ainda fraca.
- Era uma mulher, uma anja... com grandes asas plumadas, olhos verdes e cabelos... cabelos cor de ouro, é como eu me lembro.
- Meu filho é de fato abençoado... - Ela acariciou meu rosto. Como eu sentia falta do toque de minha mãe. - Se eu conseguir, hoje iremos até a missa para agradecer ao nosso Senhor.
Após passarmos um longo tempo conversando, finalmente conseguimos sair de casa juntos, a tarde estava ensolarada e mais quente que os dias anteriores, minha mãe adorou caminhar sob o calor do sol. Visitamos alguns amigos e familiares que viviam próximos. Todos falavam que sua recuperação havia sido um milagre, muitos não acreditavam que ela conseguiria sobreviver.
Quando a noite caiu, fomos até a Igreja, ela ainda tinha muita dificuldade para caminhar, e algumas vezes durante o caminho precisamos parar para ela recuperar as forças nas pernas. Ao chegarmos no local, o Padre nos recebeu, este também ficou impressionado com a recuperação de minha mãe, a mesma adiantou para o sacerdote um pouco do que eu havia lhe contado, o Servo de Deus demonstrou muito interesse sobre o que tinha acontecido, e disse que conversaria conosco após a cerimônia.
Naquela Missa, o Padre leu uma grande passagem bíblica em latim, idioma que não entendíamos, e no fim, aplicou o seu sermão como de costume. Havia falado sobre o sacrifício do filho de Deus pela humanidade, como este havia se sacrificado na cruz pelos nossos pecados, e que também deveríamos estar dispostos a realizar sacrifícios em nome da Santa Igreja, e que isto era importante para reforçar a nossa fé e lutar contra os hereges. Devo admitir que em partes eu discordava, estes sacrifícios geralmente eram oferecidos através dos nossos poucos bens, que lutávamos muito para conseguir. No entanto, a Igreja sempre ressaltava a importância de vivermos na humildade, o que eu chamaria de "miséria".
Meus pensamentos me afastavam cada vez mais da Igreja, os assuntos acerca da caça às bruxas também me perturbavam, fazendo com que eu me afastasse de minha fé. No entanto, eu orava todas as Missas para reforçar o pouco de fé que ainda restava em mim.
Ao fim da cerimônia, o Padre convocou minha mãe para conversar em sua sala particular, enquanto eu aguardei no grande salão da Igreja. Lá, pude presenciar novamente a médica, mais afastada dos outros fiéis, conversando com alguém que eu não reconhecia, mas a feição em seu rosto era de preocupação. Minha mãe saiu da sala do Padre, e manteve a porta aberta para que eu entrasse. Ela saiu com a cabeça baixa, parecia estar desapontada com algo. Meu coração palpitou com o medo do que estava por vir. Teria ele descoberto a verdade? Teria alguém visto a médica entrar em minha casa e contado à Igreja? Um turbilhão de perguntas penetrava em minha mente, o que me fez tremer de nervosismo.
- Entre, meu filho. Sente-se - disse o Padre, quando minhas pernas travaram ao passar pela porta.
A fechei e me sentei em uma confortável cadeira de frente para o sacerdote. Toda sua sala era muito bela e decorada, algo que demonstrava como a regra de "viver em humildade" só valia para nós e não para eles.
- Sua mãe me contou sobre o que disse a ela, que um "anjo a curou", ou, pelo menos é o que você acha. Foi um sonho, certo? - O Padre parecia falar em um tom de sarcasmo, como alguém que duvida de algo.
- Sim, Padre. Foi um sonho. Todos já tinham perdido as esperanças, o senhor mesmo foi até em casa e disse que não havia mais o que se fazer. Me disse que eu só tinha que orar, e foi o que eu fiz, eu orei. Todos os dias eu orava dia e noite, até que o Senhor me atendeu, e um anjo apareceu em casa.
- Aah garoto... - ele suspirou - sabe que não se pode mentir para um Padre, não sabe?
- Eu não estou mentindo! Por que eu mentiria?
Ele se levantou de sua cadeira e segurou meu queixo com força, me encarando em meus olhos.
- Não minta para mim! Sabemos que o "Senhor" não envia anjos para salvar pessoas!
Eu olhei em desespero para o lado, para um quadro que continha vários anjos, o Padre percebeu.
- Aquilo? Não passa de uma pintura de algum artista! - Ele soltou meu queixo.
- Mas, e o anjo que anunciou o nascimento do filho de Deus! - O questionei de forma ríspida e claramente desesperado.
- Mentiras, mentiras e mentiras! Você acredita mesmo em tudo, não é? É claro que existe de fato um Deus Criador, e somos os seus leais servos! Mas muitas coisas nestas páginas - ele apontou para uma Bíblia Sagrada aberta em sua mesa - não passam de contos fantasiosos. Precisamos de algo para encantar os fiéis, para convencê-los de que o Reino de Deus é algo bom, justo e bonito. Mas o que queremos de fato é a total submissão do clero e de todos abaixo dele, seus reis, nobres, plebeus, todos!
Fiquei mais assustado do que já estava e em choque com tudo o que ouvi. Nunca esperei muito deste sacerdote desde que assumira a catedral de nossa cidade, nunca simpatizei com o seu tom arrogante que falava com os fiéis. O último padre era de longe mais bondoso, agora eu estava vendo quem realmente este homem era.
- Como era a aparência desta "anja", filho? - ele perguntou, bem mais calmo desta vez.
Minha cabeça já não conseguia pensar em mais nada naquele momento, ainda sim me esforcei ao máximo para não sair correndo dali, suspirei fundo e encarei o Padre.
- Ela... era... Ela tinha grandes asas com plumas brancas... Tinha olhos verdes, cabelos dourados com ondas... Ela tinha um sorriso muito bonito também... É só o que eu me lembro, Padre.
- Ela falou com você?
- Não. Eu só a vi colocar suas mãos pálidas sobre as feridas de minha mãe e a curar.
- Muito bem então. Agradeço por ter me contado isto, meu filho. Está liberado para ir, e que a graça de vosso Senhor esteja sempre com você. - Ele fez o sinal da cruz sobre minha cabeça.
- Amém, Padre. - Também fiz o sinal da cruz, e me retirei da sala.
Minha mãe estava me aguardando na saída da Igreja. Retornamos para casa em silêncio absoluto, assim como todas as outras pessoas que se recolhiam para seus lares após a missa. Para a minha surpresa, minha mãe não fez qualquer pergunta, tanto durante o trajeto ou após chegarmos em casa. Fiz o mesmo ensopado de legumes que havia aprendido com ela, lhe ajudei a comer e a deitei sobre o seu colchão novo que cheirava a palha fresca.
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Benevolência entre as chamas da Fé
Ficción históricaPeste, Inquisição e guerra. O que tudo isso tem em comum? A morte. Uma mulher cai doente, sendo a primeira vítima da Peste Negra em uma pequena cidade francesa, e seu filho busca a ajuda de uma cientista procurada pela Santa Igreja para salvar a vid...