Me dê grandes verdades

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– Não é nada demais, calma. – ele se aproxima e enrosca, atrás da minha orelha, uma mecha do meu cabelo que se desprendeu do resto. – Lembra daquele quadro seu que eu comprei?

– Lembro, o que tem ele? – encaro sem entender, era um quadro de arte abstrata, com uma brincadeira de tons frios, eu o chamava de "A onda", pois era uma torrente de água escorrendo pela tela, era como um mar revolto, observá-lo me trazia angústia e foi da angústia que ele nasceu. Logo quando minha mãe morreu e eu estava aprendendo a viver sozinha, foram dias difíceis e pintar sempre me trouxe um pouco de paz, pois só assim eu podia me acalmar. Levei alguns anos até estar pronta e decidir vender esse quadro. Foi quando Sam descobriu que eu pintava e que eu vendia os quadros numa loja de antiguidades no centro da cidade vizinha, então, ele foi lá e comprou especificamente esse quadro, dizendo que foi o que mais tinha mexido com ele, mesmo não sabendo explicar o porquê.

– Um amigo do meu pai viu quadro lá em casa e ficou muito interessado no teu estilo, ele pediu seu número. Acho q ele quer expor seu trabalho. – eu não queria isso, eu não queria lidar com exposições e gente falando dizendo o que era bom ou não no jeito que eu pintava. Eu não precisava disso, eu só queria pintar e vender meus quadros pra ganhar um pouco de grana e sobreviver. A minha mãe sempre me disse que a fama fazia mal e ela aprendeu isso de um jeito muito duro, tinha tudo, fama, gente atrás dela, dinheiro, mas se perdeu no meio do caminho, ficou deslumbrada, esqueceu a própria essência. Ela me contou que namorava meu pai e saia com mais um monte de homens, e foi numa dessa que ela engravidou, tamanho foi o choque dela ao descobrir, então, ela se viu sozinha, sem contrato de trabalho, sem gente por perto. Minha mãe perdeu tudo, só sobrou eu, foi por isso que ela me amou como se eu fosse a coisa mais preciosa desse mundo. Ela dedicou longos 24 anos pra cuidar de mim, me ensinar sobre o mundo e sobre as coisas. O homem que ela disse ser meu pai, eu nunca conheci, não que isso fizesse alguma diferença pra mim, eu me virava bem sozinha.

– Você sabe que eu não quero isso, Samuel. – endireito a coluna e mudo meu tom.

– Você pode ganhar muito dinheiro e ficar famosa, parar de fica aqui escondida nesse lugar. Você é talentosa demais pra isso. – eu sinto uma nota de súplica na voz dele, mas eu não posso e ele não entende.

– Olha, eu aprecio o que está tentando fazer, mas eu não quero. Entenda isso. Eu vivo bem do jeito que estou levando as coisas. – largo o garfo na mesa, bebo um gole pra esfriar a cabeça.

– Você tem medo de arriscar, né?

– Tenho e você também. – ele se calou. Sabia do que eu estava falando, da vida dele, das escolhas dele. Ele achava que tinha que continuar ajudando o pai na empresa de carros. Ele tinha medo de sair de casa, da responsabilidade que carregava por ser o irmão mais velho, achava que devia tudo ao pai, por ter criado ele e o irmão sem ninguém.

No nosso entrave, era como se duas almas bagunçadas o suficiente estivessem tentando se machucar mais um pouco com as verdades que ninguém se atrevia a dizer.

– Eu sei. E é por eu saber que eu não gostaria que fizesse como eu. Pelo menos pense nisso. Pode ser uma chance. Você é livre, Isis. – eu entendi o que ele queria dizer, eu era livre, ou seja, não tinha ninguém que dependesse de mim. Não tinha ninguém, essa era a verdade.

– Eu vou pensar. – disse mesmo sabendo que iria ignorar aquilo. Eu não precisa de mais do que eu tinha, um apartamento confortável alugado, um caminhonete velha e em bom estado, eu tinha alguns amigos aqui, tinha um lugar pra vender meus quadros, outros eu vendia pela internet e era isso, eu e minhas memórias, eu não queria ter o mesmo destino que a minha mãe, não queria me perder. E eu sabia que o mundo era grande demais e vasto demais e tão fácil de se perder e não se encontrar mais.

O que será de nós?Where stories live. Discover now