No Vale do Anhangabaú, no terraço de um dos prédios e olhando a multidão abaixo, São Paulo capital não poderia se sentir mais jovem.
Sentia-se muito bem, revigorado e agitado como uma criança que conhece as coisas pela primeira vez. Seu quarto centenário não poderia estar sendo mais especial, com tudo indo como o planejado meticulosamente. A data em si era muito mais que significativa: além de estarem comemorando o aniversário tardio da capital, comemoravam também vinte e dois anos do começo da Revolução de 1932.
"...Traduzindo a alegria do povo paulista neste nove de julho, que comemorava uma derrota... Talvez tenha sido o único povo a comemorar uma derrota." Não era apenas uma derrota. Trinta e dois representava para eles, as cidades e o Estado, um marco muito mais profundo que isso. Era sobre união, superação, sobre ser paulista e o verdadeiro significado de família.
"Uma chuva de prata? O que raios isso significa?"
Desviou os olhos dos pontos animados na rua para ver o terraço lotado com seus irmãos, que mantinham os olhos no céu a espera da última atração do dia nove. Muitos do interior, até mesmo os mais novos, haviam chegado para presenciar as comemorações (a cada risada e olhar admirado que davam, Júnior se sentia ainda mais feliz). Os mais velhos estavam em peso ao seu redor, principalmente aqueles rostos tão confortavelmente familiares a si. Sua família estava novamente reunida, cantando as músicas de Hebe e de Mário Zan, segurando as mini bandeiras do Estado, sorrindo, aproveitando, comemorando.
"Estão todos ansiosos." A voz grave chamou sua atenção. A sua esquerda, segurando uma taça de vinho, cabelos no lugar e com um pouco de olheiras, São Paulo se aproximou com uma expressão mais alegre do que já teve em meses.
"Pai." Tentou controlar o sorriso, mas tinha certeza que o brilho em seus olhos o denunciou. "Não te disse? Que faria o evento do ano? Olhe só pra isso." Voltaram a olhar para a multidão, o som das bandas chegando até eles de forma fraca. "Muitas cidades paulistas ainda estão pra chegar amanhã. Perdi a conta de quantas outras de outros estados compareceram hoje." O mais velho sorriu com ele, apoiando o objeto que carregava na amurada.
"Você realmente gosta de grandes eventos, não é? Ainda me lembro de quando transferi a capital, a festança que fizeram e você mal tinha quinze anos ainda." Ambos riram da memória, que por um momento pareciam tão antigas quanto pareciam.
"Não fale desse jeito, eu vou começar a me sentir... Velho." O paulistano torceu o nariz. "Por mais que seja uma comemoração tardia, não poderia ter escolhido data melhor. Em um momento melhor, sem querer entrar em politicagem e sem conseguir fugir dela."
"Acho que nós podemos dar um desconto sobre isso hoje. O presidente te mandou felicitações também, você sabe."
"Sabes o que eu quero que ele faça com as felicitações dele." Disse em tom regado de sarcasmo.
"Júnior." Paulo suspirou profundamente, balançando a cabeça. Voltaram a ficar em silêncio, vendo como agora os prédios ao redor, janelas e sacadas também se amontoavam de curiosos. Os militares nos holofotes posicionados e tão atentos ao céu quanto a população.
"Está gostando? Das comemorações?" Se aproximou um pouco mais do patriarca, ombro a ombro para ser melhor ouvido conforme o volume das conversas aumentavam.
"Por que eu não estaria?" São Paulo Estado o olhou com um misto de provocação e divertimento, que o filho imediatamente percebeu. "É só o primeiro dia."
"Eu sei. Mas essa festa, ela não é só pra mim." São Paulo capital colocou uma mão sobre o ombro do pai, uma onda forte de sentimentos o invadindo. "É para todos nós. Um motivo para estarmos todos juntos sem nenhuma tragédia envolvida." Apontou para trás, de volta às cidades.
Jundiaí conversava animadamente com São Vicente e Santos, Marília arrastava Tupã e Presidente Prudente para alguma aventura com Osasco e Praia Grande, Bertioga e Sorocaba, meio bêbados, contavam suas histórias em meio a risadas para os mais novos, Santo Amaro parecia mais vivo que nunca tocando sanfona com Mogi das Cruzes na viola caipira, Guaratinguetá ajudava Campinas a prender seus cabelos com uma fita...
"Que se roam de inveja, nenhuma capital jamais fez uma comemoração como essa! Me sinto mais novo até, como se ainda tivesse cem anos."
Paulo o fitou por um momento antes de rir, sua risada reverberando com o som dos aviões que se aproximavam, o silêncio de expectativa se transformando em gracejos quando os triângulos prateados começaram a cair, as luzes dos holofotes transformando a cena em uma literal chuva de prata. Refletindo o brilho lançado, os papéis se espalharam pelas ruas ao redor do Vale do Anhangabaú, pessoas esticando suas mãos para pegar, risadas animadas e gritos empolgados a cada nova leva. Paulo Júnior inspirou profundamente, sentindo o vento frio de inverno passar e o sentimento do povo o inundar, numa alegria sem tamanho. Atrás de si, seus irmãos também gritavam, olhos no céu para o espetáculo tão esperado da noite.
"Você merece. Nós merecemos." São Paulo passou a mão por suas costas, parando na nuca em um carinho, olhar macio em conjunto aos olhos cada vez mais marejados da sua capital. "Não comece a chorar logo agora, tem a noite inteira pra comemorar!"
"É só que..." Riu também, limpando seu rosto disfarçadamente. Não era tristeza o que estava sentindo, muito longe disso.
"Eu sei, eu sei." O puxou para um abraço apertado, retribuído da mesma forma. O paulista ouviu os suspiros trêmulos com um aperto no coração e ainda sim continuou feliz, justamente por saber o motivo.
Como não se sentir feliz por ver tudo o que superaram? Só de olhar no que a cidade havia se transformado, no quão longe estavam chegando juntos seu peito se enchia de orgulho. Sua Paulicéia já não era mais tão pequenina assim.
"Júnior, papai!" Marília, com os braços cheios dos papéis prateados chamou a atenção dos dois. "Todos eles tem o brasão do estado!"
"E o ano também!" Osasco jogou os que tinha na mão para o alto, rindo. "Por que vocês estão chorando?"
"Eu não estou chorando." São Paulo capital tossiu, soltando o mais velho o suficiente apenas para abraçá-lo de lado, um braço em seu ombro. "Estou apenas mais emotivo hoje."
"Santos disse que quanto mais velho, mais melindroso você iria ficar. Pelo jeito é verdade, né?" São Paulo Estado voltou a gargalhar, a capital indignada engasgando suas palavras e saindo em passos largos em busca dos irmãos.
Voltando a pegar a taça esquecida, olhou com graça para a paisagem da chuva de prata sobre a cidade eufórica. Erguendo-a, brindou com um sorriso e em silêncio, seus passos o guiando de volta para sua família.
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Chuva de Prata
Ficção HistóricaSão Paulo e São Paulo capital são inundados pelos fortes sentimentos da grande festa do Quarto Centenário, em pleno nove de julho de 1954.