Prólogo - O restante de Catradora

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Catra demorou um pouco naquela noite para entrar no quarto. Ela geralmente ia mais cedo. Adora assistiu da cama sua parceira chegar pela janela, contornar o móvel e se sentar ao seu lado com um olhar distraído.

Elas estavam juntas há dois emocionantes anos agora, viajando por todos os cantos do universo, conhecendo novas pessoas, vendo quem precisava de sua ajuda e fazendo o trabalho duro. Elas haviam aprendido muito, tanto uma sobre a outra quanto sobre o mundo. Se salvaram várias vezes, fugiram dos conflitos para namorar, riram, brincaram e se divertiram com Glimmer e Bow. Eles eram ótimos como quatro, mas Adora e Catra logo chegaram à conclusão de que as duas precisavam de um compromisso sólido antes do compromisso com os amigos de Adora. Elas eram as bases uma da outra. Passar um tempo juntos era se recompor. Na verdade, eles teriam perdido a cabeça sem a outra, da mesma forma que tinham feito como rivais todos aqueles anos atrás. Se tornaram apegadas, como se precisassem compensar pelo antigo momento sombrio. No fim das contas, a verdade é que passaram a se importar muito com a vida uma da outra sem questionar.

Talvez tenha sido um pouco demais para processar, como Adora estava pensando desde que voltaram para o castelo de Lua Clara. No espaço, tudo parecia tão alarmante e desesperador, com tudo que tinham que fazer, os problemas que tinham que resolver. A adrenalina nunca decaía - e não importava, porque elas tinham uma a outra e davam paz uma a outra. Em contraste, ficar no castelo parecia viver em câmera lenta.

A letargia que as invadiu era maior do que a que infringia Glimmer e Bow. Para os amigos, estar de volta significava festejar, comemorar suas vitórias, preencher lacunas da saudade e... até ficaram noivos! Tudo bem, não bem só isso, eles também ficaram um pouco entediados e começaram a planejar quando sairiam novamente, para deixar o retrato perfeito que agora era Etheria para trás. Mesmo assim, a volta pareceu mais natural para Glimmer e Bow.

Não foi tão certo para Catra e Adora, sabem. Catra, como os outros três logo notaram, lidou com a quietude trabalhando duro nas tarefas reais do castelo, algo pelo qual Glimmer era imensamente grata. Ela cuidava de tudo, de cada enfadonho problema de gerenciamento do reino que o castelo tinha: a distribuição de suprimentos, as questões de sanidade, as intervenções nas cidades. Tudo parecia até desnecessário para Glimmer, dado o paraíso em que viviam agora. Claro que ainda havia algumas falhas de comunicação aqui e ali, velhas pontas soltas ainda por resolver, mas cada tarefa era desinteressante e meramente burocrática. Ainda assim, Catra parecia muito interessada e preocupada, o que Glimmer descartou como uma de suas reações exageradas.

Isso não acabou bem. Glimmer e ela começaram uma discussão sobre os maus-tratos de alguns funcionários do castelo, com Catra muito incomodada com a gestão da equipe e Glimmer não entendendo como Catra passou a se preocupar com algo que nunca havia sido um problema para o local. Ela até presumia que Catra era mais insensível do que isso, então o que deu ela?

Esta declaração dela não ressoou bem com Adora, para quem ficava cada vez mais claro que Catra era, surpreendentemente, muito carinhosa e preocupada. Catra cuidou dela nos últimos anos de uma maneira que Adora sentia não poder nem mesmo retribuir. Catra lutou incansavelmente com ela nas batalhas e segurou seu corpo com força sem demora sempre que um abraço era mais necessário, e ela também fazia aquelas coisas para estranhos que conhecia! Adora teria ficado com ciúmes se ela não estivesse recebendo exatamente a mesma coisa.

As palavras de Glimmer pareciam realmente injustas com ela, mas Adora não era do tipo que contradizia seus amigos por causa de frivolidades. Todo o mal-entendido se resolveu quando Adora e Bow fizeram as duas ignorarem suas diferenças e, por favor, manterem a paz. Manter a paz foi uma lição tão importante que aprenderam nesses dois anos de viagem, esse argumento foi muito eficaz para encerrar o conflito.

No entanto, desde então, as coisas ficaram um pouco frias. Catra estava tendo um tanto de conversas com Melog aparte de todo mundo, aquela criadora de problemas. Ela até brigou com o felino uma vez - isso foi inédito. "Eu nunca disse para você ficar do meu lado!", Ela havia gritado, mas parecia muito grata por tê-lo por perto após a discussão. Ele foi atrás dela mesmo quando ela tentou se isolar.

E trouxe paz mesmo. O retiro de Catra meio que pôs todos num âmbito de totalidade mística em que finalmente se tornaram parte daquele paraíso colorido, como se fossem peças de uma grande pintura renascentista.

Seu sexo com Adora se tornou mais relaxado e altamente sensível, focado. Suas aparições no castelo tornaram-se menos frequentes e ela e Glimmer começaram a administrar as tarefas conforme apareciam, sem preocupações.

Glimmer e Bow planejaram seu casamento como as crianças planejam seus aniversários temáticos. Era tudo com o que se importavam e era tudo o que faziam.

Adora andava envolta das pessoas ajudando aqui e ali, exibindo-se nas festas, agradando os desejos dos amigos sempre que possível, sentindo-se útil. No final do dia, ela estava tendo boas noites de sono, mesmo nos momentos em que se ressentia do fato de Catra não estar vindo para o quarto, dormindo sabe-se lá onde.

Agora, a mulher-gato estava sentada na cama, os pés ainda no chão, a coluna ereta, a mente divagando. Do seu lado da cama, Adora só podia ver as costas de Catra, sua cauda se movendo lentamente e seu cabelo castanho, ainda curto e bagunçado. Que imagem! As costas de Catra estavam emolduradas nas laterais pelas chamas de um irritado Melog deitado com a cabeça erguida no lado oposto do quarto. Catra estava voltada para ele.

Ela parecia em transe. Adora nem sabia que sua namorada conseguia ficar tão perdida em pensamentos. Isso a encheu de arrepios. Antes que Adora tivesse a chance de dizer qualquer coisa, as digressões de Catra escaparam de sua mente.

"Sabe, quando o Mestre da Horda estava se certificando de que meu corpo estivesse disponível para seu acesso, houve um momento depois que eu saí do tanque de água de choque... Ele ordenou que os clones tirassem minhas roupas e me colocassem em uma das cápsulas. Eu estava tão entorpecida, mas ainda tinha muitos sentimentos sobre aquilo. Eles iam arrancando os pedaços de tecido, até mesmo rasgando..." Ela bateu no peito. "Eu mesma escolhi aquelas roupas, quando decidi superar o Hordak". Seus olhos ficaram ainda mais focados no nada enquanto ela processava a informação que acabara de dizer. Uma lágrima rolou de um olho. Ela continuou com uma cara amarga "Eu só chorava e chorava enquanto eles me colocavam na cápsula, vendo eles tirarem as roupas como se... como se fosse eu que eles estivessem jogando fora. Pareceu algo tão importante, como se eu tivesse me tornado completamente vazia e meu corpo se transformado num cadáver... Naquele momento, eu só consegui desejar que tivesse me matado antes de ele conseguir fazer aquilo comigo."

Sua cabeça virou um pouco, e Adora conseguiu ver seu perfil, com uma expressão de revelação nele.

"Mas aí você não estaria aqui, estaria?"

Ela olhou para baixo, o transe terminou. De repente, ela ficou com vergonha e corou, percebendo o quão culposa ela soou. "Me desculpa".

Adora estava lívida! Talvez se demorasse um pouco para processar o que Catra acabara de falar, ficaria mais calma, mas tudo veio rápido demais para ela. Como Catra se atrevia a falar sobre uma coisa tão horrível no meio do lugar feliz delas! Por que - por que?! - ela não conseguia seguir em frente, pelo amor de Deus?! Por que isso agora? Por que ela sempre queria perturbar cada parte de suas vidas? Como seria possível amá-la desse jeito?! Adora tinha que acalmá-la imediatamente! Aquela gata tinha que parar com esse comportamento!

"Me desculpa" Catra se levantou e correu de volta para a janela, antecipando o ataque de Adora. "Catra!! Volta aqui!" Ela a segurou na janela. Catra não sabia o que fazer, mas não largou a janela. "Você quer falar sobre isso, vamos falar sobre isso. Mas você vai abrir seu coração para mim e falar gentilmente sobre nós, ok?!" Vociferou Adora. "Tá, claro" Catra respondeu, enquanto fazia o contrário. Ela se separou de Adora e se retirou.

Adora se sentiu compelida a persegui-la, horrorizada com a ideia de que poderia estar perdendo-a. Mas parte do respeito de Catra que ela conquistou nos últimos dois anos lhe disse para não fazer isso. Quando Catra precisava de tempo, era melhor dar tempo a ela. Então, Adora hesitou na janela em ansiedade consumidora por alguns momentos e então se virou para a parede da janela, grunhindo, e se sentou no chão, segurando sua cabeça em raiva e frustração. Uma parte dela entendeu o que só seria compreendido pelas duas muito tempo depois - que era tarde demais para elas, sempre tinha sido tarde demais para elas e elas teriam que recomeçar.

O que resta de CatraOnde histórias criam vida. Descubra agora