O Fim - Merle

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   Quando se tem nove anos, suas prioridades, em geral, são brincar, estudar e ser feliz, mas quando se nascia nas Terras do Caos, aquele início de tudo que alguém decidiu chamar de país, as coisas eram um pouco diferentes... Certo... Bem diferentes.

   Fazia parte de um povo conhecido como Filhos da Noite, que eram muito conhecidos por travarem guerras eternas contra os Filhos da Luz. Nosso passado era o real culpado disso, é um ódio praticamente passado pelo sangue geração, após geração.

   Não sabia o motivo de odiá-los, apenas odiava.

   Pelo menos não tínhamos magia própria... Podíamos incendiar as coisas com nossas mãos, mas não era possível controlar o fogo que criávamos. O calor, a luz que as chamas emitem... Elas nos hipnotizavam, tão belas e... Adorava incendiar coisas! Gostava da mais pura destruição, do caos, em geral.

   Segundo todos, nossas terras foram amaldiçoadas. Realmente não duvidava que fosse verdade, metade dela era infértil, mas a culpa era nossa também, quase que toda nossa... A queimamos quase que inteira sozinhos.

   Todos os dias possuía quase que a mesma rotina, saía de casa e ia atrás de comida para minha mãe e eu, ela era doente, ou pelo menos, dizia estar doente. Realmente não me importava em sair para andar pela cidade.

   Morávamos na capital, Terra de Ninguém. Um nome péssimo, mas era por nossas terras nunca terem tido um nobre ou até mesmo um rei, já que sempre que alguém tentava reivindicar o território como seu, acabava sendo morto.

   Somos uma raça extremamente egoísta.

   Como escola era algo que não era importante, já que costumamos incendiá-las, não estudava e em casa, minha mãe estava quase morrendo e meu pai havia nos abandonado há muito tempo, isso era bem típico e considerado normal.

   A capital era, praticamente, feita de prédios em pedaços, coisa em chamas e cadáveres no chão. E sangue vinho. A palavra bondade nunca deveria ser usada ali, pois, sinceramente, todos desconheciam o seu significado, Filhos da Noite sempre tentavam tirar proveito um dos outros. Achava aquilo hilário.

   Podia ser nova, mas nunca fui tola. Não tinha amigos, mas isso não era algo que me incomodava, na verdade, sempre foi algo absurdamente comum.

   Todo o dia ia ao mesmo restaurante. O dono dele era apaixonado pela minha mãe, pois mesmo ela sendo uma babaca, era bem bonita, uma beleza que mesmo a doença não conseguiu estragar completamente, podia ser que a odiasse por isso.

   Assim que batia na porta dos fundos da espelunca decadente, um homem, que deveria ter uns quarenta e seis anos, abria. Sempre que me via, dava um belo sorriso, mas não era retribuída. Ele apenas entrava novamente e logo voltava com dois pratos com batata e arroz. Assim que me entregava começava há perder seu tempo.

   – Merle. Fale para sua mãe passar aqui mais tarde. Sinto saudade dela.

   – Não minta. Ninguém sente saudade daquela Bruxa.

   O homem riu.

   – Minta para ela então. Por mim.

   Dei de ombros, como de costume e fui embora, contava meus passos, todos os dias, era assim que controlava a média de mortes na cidade, anotava mentalmente e colocava na minha tabela imaginária. A cada trinta passos, um cadáver. Aquilo era considerado uma boa média.

   Aquelas últimas semanas tinham sido absurdamente tranquilas, os Filhos do Dia estavam recuando novamente para Hedda, uma cidade apenas deles, igual Terra de Ninguém. Era dos Filhos da Noite. Hedda era dos Filhos do Dia.

   Quando passava por uma rua mais estreita um grupo de homens sempre mexia comigo, mas apenas falavam, nunca tentavam tocar em mim. No fundo, acredito que eles não desgostavam de mim.

   – Tem muitos perigos por essas ruas, pode acabar perdida, pequena Merle.

   – Sabem que sei muito bem correr e se eu me perder... As ruas costumam me proteger.

   – Se fosse você, não contaria com as ruas.

   – Eu não conto, não de verdade.

   Todos trocávamos sorrisos de lobo. Um dia me sentei junto deles e ficamos trocando essas farpas, mas era bom que soubessem o meu nome, se fosse morta em alguma daquelas ruas, pelo menos saberiam quem eu era para, quem sabe, avisarem a minha mãe... Mas acho que seria bem improvável que fizessem, não faria se fosse eles.

   Assim que cheguei em casa, minha mãe estava deitada, como sempre, na mesma posição de quando saí. Ela não se movia, nem sequer um único músculo... Preguiçosa.

   Naquela época se não limpasse a casa da areia da rua, ninguém limparia. Como a casa era feita de madeira e barro, nunca ficava realmente limpa, mas naquele momento ela estava péssima, mesmo assim, me recusava a limpar aquele maldito lugar novamente.

   Me sentei na cama, junto da minha mãe, que nem falava mais comigo, ficava ali, parada, olhando para o nada. Achava que não limpar a casa era o meu modo de demonstrar que esperava que ela fizesse algo, que fale, me batesse, qualquer coisa... Que tentasse ser a droga de uma pessoa novamente.

   – Aquele tolo quer que você vá visitá-lo, disse estar com saudade da sua chatice.

   Como de costume, não tive uma resposta.

   Coloquei o prato sobre suas pernas e comecei a comer a minha comida, enquanto lia um livro sobre uma cidade mágica, a Cidade de Cristal, uma cidade de mestiços, onde todos vivem felizes e juntos, onde não existe pobreza e nem tristeza. Um mito. Supostamente esse lugar realmente existe, mas a cada seis horas a cidade muda de lugar. Se realmente existir deixa de ser um mito e se torna uma lenda, podia ser pessimismo da minha parte, mas... Não existe um lugar onde pessoas possam ser felizes sempre se convivem uma com as outras.

   Tinha prendido a ler na época em que minha mãe não era uma planta. Assim que terminei a comida, coloquei o prato no chão e continuei a ler, não vi se ela tinha comido ou não. Devia ter adormecido, pois em um piscar de olhos o prato estava vazio.

   Assim que anoiteceu fiz tudo novamente e assim tinha sido aquele último ano.

   Só que, em uma noite, uma em que a minha mãe se levantou da cama, uma em que ela limpou a casa. Algo absurdamente estranho. Voltei e me sentei ao seu lado, como de costume, sua respiração era lenta e desregulada.

   – Merle. – Quando minha mãe tocou na minha mão, estranhei, olhei para ela. Não me lembrava da última vez em que havíamos trocado mais de uma palavra.

   – Fale.

   – Tenha aventuras. Merle. Pelos deuses, saia do Oeste. E tenha pelo menos um amor completamente épico... E tente... Tente ser sempre a melhor... Minha forte pássaro negro.

   – Está delirando agora? – Meu tom tinha sido completamente rude.

   – Estou morrendo, Merle.

   – Jura? Não tinha percebido. – Minha ironia a irritava.

   – Viva menina. Você merece mais que isso. Você pode ser mais que isso.

   Os outros cinco dias minha mãe não tinha falado mais nada, não se levantou e quase não comeu. No sexto e no sétimo nem sequer tocava na comida. Então percebi que ela estava morta.

   Não existiam curandeiros e nem nada do tipo naquelas terras, não que não cobrassem um absurdo. Então Filhos da Noite como minha mãe simplesmente morriam. E era provável que isso acontecesse comigo também.

   Filhos do Caos não tem direito a felicidade, nascemos sabendo disso, crescemos com esse fato e morremos conformados com essa verdade, mas não queria morrer como todos aqueles fracassados.

   Queria ser uma lenda, queria ser lembrada, queria ser o sussurro entre os bêbados e donas de casa. Queria ser uma sobrevivente.

   E pelo jeito, a partir daquele momento não me restavam mais muitas opções.

A assassina do NorteOnde histórias criam vida. Descubra agora