-Capítulo 5-

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Olhos fechados, cabelo bagunçado, corpo enrolado no lençol como um sushi, essa sou eu em plena quarta-feira de manhã. Ao meu lado está aquele que todos nós sabemos que não gostaria que estivesse. Quando criança nossos pais nos contam histórias fictícias sobre monstros que ficam em baixo de nossas camas, aguardando o melhor momento para nos assustar, em minha vida, ficção torna-se realidade de uma maneira bem mais horripilante que os versos contados, eis que o monstro da minha vida dorme ao meu lado, não procurando o melhor momento para me apavorar, mas sugando todos eles até não sobrar nenhum para eu aproveitar.

São exatamente 04:30 da manhã, as lesões desincharam mais, passaram da cor esverdeada para amarelada, estou me sentindo mais forte, mais revigorada que antes. Faço minhas obrigações domésticas de forma que eu cumpra o horário estimado. Costumo classificar minha rotina como uma empresa, tendo seu expediente determinado e prazos a serem cumpridos. Eu sei, eu sei, você deve está pensando: "Por que você fica comparando a isso?", porque quando não se tem uma luz aparente no fim do túnel, você vira a luz da sua própria escuridão. Omar acordara(como sempre) no horário previsto, ouvi o rangir da madeira do piso ecoar pelo ambiente da cozinha, sei que ele caminha em minha direção. Sem expectativa de bom humor ou algo do tipo, coloquei seu café na mesa e fui verificar o sono do Patrick, "dormindo como um anjo". Penso.


- Ávila! - Chamou-me Omar.


"Ávila? Isso nunca ocorreu, nunca me chamou pelo nome, os adjetivos de sempre são vagabunda, desgraçada..."Algo não está cheirando bem". Penso.


-Oi! Já estou indo!- Respondo com um pé atrás. Afinal coisas boas nunca saem daquela boca.

-Anda, não tenho o tempo todo!- Disse ele. 

Chegando na cozinha me deparo com dinheiro em cima da mesa, ele estava sentado na cadeira do lado direito, braços apoiados, postura curvada...Ele com certeza iria falar algo que não estava no seu cotidiano de papel de ogro. Li sobre linguagem corporal em um livro que encontrei na casa dos meus pais, já faz 3 anos e meio, mais ainda lembro de algumas coisas.

-Você vai fazer as compras essa vez. -Comentou ele.

-Que?- Respondi sem pensar nas consequências ou sei lá mais em que, o fato é: ELE DISSE PARA EU IR FAZER COMPRAS! isso significa que irei sair de casa pela primeira vez desde que fui aprisionada a esta condição de vida. Que paradoxo não? Ainda tenho desejos de criança, ainda sou praticamente uma criança, mas não posso viver como uma. Recordo-me dos tempos em que saia com o papai para a grande feira da cidade, momentos de doce alegria, momentos que gostaria que fossem eternos. Mas a vida são como rosas, de primeira olhamos para as pétalas avermelhadas e seu aroma incrível, para depois nos depararmos com o afiados espinhos abaixo, que quando mais próximo o toque, mais profundo o corte há de ser.

-Se gritar novamente assim, eu mudo de ideia.- Falou ele com a maior ignorância do mundo.

-Certo, me desculpe!- Disse. Estou tão inebriada com a felicidade que me consome a cada segundo que não me importo com sua ignorância.

-Posso levar o Patrick comigo?- Perguntei com temor de uma resposta negativa.

-Leve ele, só não me traga problemas, se não já sabe o que acontecerá com você assim que eu chegar amanhã. -Disse ele com um olhar furioso.

Agora me peguei pensando...ele disse amanhã? Pensei que era impressão minha, tenho notado em algumas madrugadas que o Ogro tem saído em pé de lã. Desconfio, mas não por muito tempo, não gosto de me intrometer nos assuntos do Omar, o resultado da minha desconfiança será hematomas por todo o corpo, olhos inchados, cabelos puxados, situações que eu evitara pelo meu bem e do meu filho. Meu filho, meu tudo, tento protege-lo de todas as maneiras das atrocidades que sofro, lutarei até o fim por seu futuro, que será brilhante.

-Claro, não causarei problema nenhum!- Falo. 

A curiosidade está me sufocando, o fato do seu retorno tardio para casa me deixa atordoada. Não, não é por preocupação com ele, claro que não, por mim hoje mesmo ele poderia morrer, pois literalmente minha liberdade é a preço de sangue. Minha preocupação é o que ele pode estar tramando, nada de bom vem dele, não espere que ele irá sair e me comprar um buquê de rosas...BLÉH! Me dá ânsia de vômito só de imaginar. Lembro-me do James, minha primeira paixão, aquele sim nunca me causaria mal estar, meu sonho antes de ser vendida pelo meu pai era casar com ele, não imaginava somente um buquê de rosas, isso é para os fracos! Um oceano de momentos felizes com o James era meu maior anseio, com suas adversidades claro, mas se estivesse ao lado dele o maior dos problemas se tornaria um grão de areia em minhas mãos. Porém sabemos que muitas vezes nada sai como planejado, e esse dito caiu sobre mim da pior maneira.

Ouço o bater da porta...ele foi embora. "Amém". Penso. Vou arrumar rapidamente as coisas para ir a feira da cidade, aquela feira... 3 anos e meio depois irei a esse lugar, que momento, que sensação. Pra muitos pode parecer simplório, mas para mim é como o meu primeiro andar, hoje aprenderei a andar novamente, um passo atrás do outro, uma caminhada de esperança, uma compra que encherá os armários, mas que também encherá minha alma de alegria e vigor para continuar lutando sem cessar como a tia Andréia, que nunca mais vira com meus olhos, mas que suas palavras seguem comigo até hoje. "Seja forte Ávila, seja forte".

Finalizada minhas obrigações, tomo meu banho junto com o Patrick, brincamos com a água do chuveiro, gargalhadas ecoam, que sorriso maravilhoso! sorriso de paz, sorriso de inocência. O banho é meu momento favorito, a intimidade é a melhor virtude nesse instante, podemos ser quem quiser, fazer o que quiser...Ah! que momento meus amigos, que momento. Agora que estou cheirosa, linda, maravilhosa...Que? em que mundo eu estou? estou andando em nuvens! Pisco os olhos e me deparo com o relógio em minha frente. "Droga, tô atrasada! os melhores produtos são os que chegam cedo". Penso em voz alta. Você deve está se perguntando como eu, uma adolescente casada forçadamente que nunca saiu de casa sei disso, a minha resposta é: infância. Infância esta interrompida no tempo cronológico, mas não no psicológico. Memórias fixadas em um lugar especial nunca fugirá de nossas mentes. Venho de uma família de negociantes, sei bem como funciona esse mercado, no fim das contas a mercadoria mais cara em dinheiro e sem valor para o vendedor fui eu.

Agora esquecendo um pouco esse meu passado triste, vamos focar no presente. Estou pronta, pronta para dar meu primeiro passo, pego minha bolsa e o Patrick, ambos em meus braços e então crio a coragem de abrir a porta, seguro firme na maçaneta e lentamente a abro, pensando eu que cada movimento, segundo, milésimo era importante, pois não saberia se teria essa oportunidade outra vez. Aberta, este é o estado da porta, finalmente vira a paisagem que sonhava em ver novamente, o vento forte e seco balança meus cabelos, que como pétalas voam de acordo com sua direção. "É lindo". Penso. Fico maravilhada com toda essa vista, então ponho o pé no chão de terra abatida e caminho pela rua, o sol está de rachar a cabeça, mas quem se importa? é a melhor quentura que já senti em toda minha vida.

Enquanto caminho vejo a lojinha de seu Juca e a lanchonete da Dona pipoca, as recordações invadem minha mente, lembro-me bem de juntar minhas moedinhas para comprar pirulitos para mim e o James depois da partida, pena que não poderei dar nem um "Oi" para eles, se Omar souber disso estou frita feito empanado. Chegando a grande feira me deparo com uma multidão de gente, comerciantes e fregueses, famílias, pessoas de bem(pelo menos pela aparência), olho para as mulheres sentadas no chão vendendo suas mercadorias, homens em suas lojas de tapete e adornos para nos embelezarmos segundo a tradição, é incrível. Começo a comprar o que faltava em minha casa, alguns vegetais, frutas, frango e outros alimentos necessários.

-Que tal irmos pro final da feira Patrick?- Falo de forma fofa.

Sabia que o Patrick não me responderia com palavras, mas o olhar dele sempre me passava algo. Caminhando para o meu destino me deparo com algo que não esperava.

-É impossível! Não pode ser. -Falo abismada.

Meus olhos não estão enxergando isso, meu coração palpita cada vez mais forte, sem perceber as compras caem das minhas mãos e o choque toma conta de meu corpo por inteiro. "É ela". Penso. 

-É ela mesmo, é você mamãe!- Sussurro eu.





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⏰ Última atualização: Apr 19, 2021 ⏰

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