Capítulo 3 - Amores Antigos

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 Vagar sem rumo por terras cheias de humanos, sentir os pés tocando o solo e se esforçar para caminhar seguindo apenas o instinto que mostra a direção a ser seguida. Quanto tempo havia se passado? Semanas, meses, anos? O tempo era irrelevante quando o envelhecer não passava de acúmulo de experiência, mesmo que agora acompanhado de uma agonia que não contente em crescer, parecia dirigir cada um dos passos de Andiah. Entre os anjos caçadores existiam rumores sobre um local capaz de armazenar os maiores segredos, capaz de esconder grandes verdades e acessível apenas aos mais puros de espírito. Em outras palavras, somente aqueles escolhidos. Um bolsão astral, uma região perdida entre o mundo dos sonhos e terras onde fadas são reais. Vagando, viajando, se esgueirando. Era fácil permanecer invisível quando se passara tanto tempo aprendendo a caçar e a permanecer oculta. As forças celestiais demorariam muito a encontrá-la, a menos que ela assim desejasse.

O tempo nublado era uma constante e seus olhos verde-acinzentados enxergavam com cada vez menos pureza a beleza em que grande parte dos homens vivem e ignoram. Estava muito cansada após exaustiva jornada e o mundo abaixo dos céus cobrava seu peso em fadiga. Asas astrais faziam cada vez mais falta. Sob seus pés, a areia gelada e levemente molhada pelas ondas que batiam vez por outra no local. Latidos poderosos a trouxeram de volta de seus pensamentos que vagavam em regiões difíceis de serem descritas por palavras. Um cão corria em sua direção e parou ofegante a poucos metros de distância. Um homem caminhava a passos lentos e fizera o animal parar com um comando vocal peculiar. 

- Jovem Andiah! Uma das mais promissoras caçadoras que já tive o prazer de conhecer. - Disse o homem, parcialmente calvo, com grandes óculos escuros e camisa de botão florida e aberta. Em seu peito era possível enxergar diversas inscrições em hebraico. - Não posso dizer que tenho prazer em reencontrá-lo. - A ex-caçadora retrucara entre os dentes. - Mas por infortúnio preciso de seus serviços.

O homem, agora próximo de Andiah, encarava o oceano. Usava uma calça jeans branca, extremamente surrada e o animal que o acompanhava - um labrador de médio porte de pelos dourados - corria em círculos ao seu lado, não latia apenas parecia aguardar algum novo comando de seu mestre. As primeiras horas da manhã ainda traziam o frio da madrugada e naquela região, o sol era sempre tímido.

Cada vez mais distante dos céus a comunhão era menor, os cânticos celestes não podiam mais ser ouvidos e o silêncio era cortado por seus pensamentos que como faca o rasgava sem cerimônia. - Preciso chegar aos registros Akashicos. - Andiah disse sem alterar sua entonação. - Sei da forma que você negocia, estou disposta a pagar.

O homem virou sua cabeça em direção a captare e baixou vagarosamente seus óculos escuros. Encarou-a com seus olhos de um intenso brilho prateado que pareciam perscrutar cada centímetro de uma alma torturada por perguntas. Após uma leve risada, o homem pergunta - Você venderia sua alma para um anjo?

Não havendo muito que pensar, Andiah responde - Já vendi uma vez, servi a Cidade de Prata por muito tempo. Não posso vender de novo. Hoje eu sei que mentiras antigas são difíceis de morrer.

Seu interlocutor interrompeu as carícias que fazia em seu cão e a olhou com o máximo de espanto que sua condição permitira. Perguntou então mesmo sabendo a resposta - O que queres dizer com isso?

Andiah aparentava mostrar sinais de impaciência. Ansiava por respostas e não estava disposta a passar mais tempo com esse comerciante de informações. Mesmo assim, o respondeu - Anjos podem ser tão manipuladores quanto demônios. Servem apenas a mestres diferentes. – Agora, a ex-caçadora demonstrava toda sua insatisfação e sacava sua lâmina que havia passado tempo demais embainhada.

O homem se levantou depressa e recuou alguns passos. Não gostava do que estava acontecendo e, principalmente, o afligia não saber qual seria o próximo passo de sua interlocutora.

 - Pois bem então. Você está descrente. - Disse o homem tentando retomar a liderança da conversa e encarando Andiah de frente, mas a uma distância segura. - O que você está disposta a trocar por essa informação?

 - Não posso vender minha alma, já que não a possuo, mas posso vender parte dela. Nesta lâmina que entrego está parte de minha essência. É o suficiente para você Tsadkiel? - Disse Andiah resignada entregando a espada ao anjo negociante que, após recebê-la, passou a avaliar minuciosamente cada detalhe da mesma, sem esboçar nenhuma reação visível.

 - Parece que temos um acordo. - Respondeu Tsadkiel demonstrando uma leve satisfação. - Vou abrir o caminho, você terá algumas horas por lá para ir e voltar antes que os outros a encontrem. Seja objetiva em sua busca. - Dito isso, um portal azulado se abriu sob os pés de Andiah e cinco grandes anéis alaranjados envolveram seu corpo imediatamente, transportando-a a uma rede de túneis astrais que pareciam se deslocar através do universo. Estrelas e planetas passavam rápido ao fundo, rápido demais para serem identificados. A parada rápida e abrupta fez com que Andiah caísse de joelhos no chão.

 Um jovem vestindo simples roupas monásticas, de pele azulada, estava a sua espera. Estendendo sua mão em sinal de auxílio, ajuda a ex-caçadora a se levantar e se põe a dizer: Um importante emissário disse-me de sua vinda. Conexões importantes foram feitas e seu caminho é livre aqui. - Os dois caminharam por alguns instantes para dentro da fortificação. Após passarem pelos arcos, que ao contrário do que se esperaria , eram desguardados, Andiah se deparou com algo que jamais poderia supor.

Um imenso jardim de flores de cristal estava diante de seus olhos e um sem número de monges cuidava das delicadas e cristalinas flores multicoloridas. Não conseguia conter sua surpresa olhando tão insólita e bela paisagem. Percebendo a reação admirada de Andiah, o monge retomou a fala.

 - Somos jardineiros do infinito. Aqui são os jardins de tudo, lembranças de todos os mortais se encontram nas nossas flores de cristal. Pode caminhar, toque a sua flor, encontre o que procura. - Sua voz era carregada de calma e serenidade. Uma voz que só é possível quando se atravessa uma vida inteira sem conhecer o significado da palavra dificuldade, algo que humanos terrenos só podem sonhar.

 Andiah caminhava com cuidado entre campos de flores, quando sentiu que suas emoções vinham à tona, todas de uma só vez, entre vontades de rir e chorar ela viajou no espaço-tempo mais uma vez. Levada a uma dimensão perdida em suas memórias ela se viu ainda humana. Uma jovem e debilitada humana, conhecendo o amor. Um jovem e sonhador poeta local que a tratava como se nada mais houvesse além dos dois. A cada toque, a cada olhar o mundo parecia parar por instantes, o desejo era que cada lembrança daquela fosse emoldurada e guardada em um cantinho distante da mente, onde estaria segura. Para estar sempre ali nutrindo esperanças de que valia a pena viver. Os dois traçavam planos e mesmo que ela fosse uma jovem frágil e adoentada, sonhavam com o futuro.

 A sensação de completude inundava sua alma e, finalmente, entendeu o valor desse amor que os humanos tanto falavam, aquela lembrança bastaria. Os humanos capazes de tanta destruição eram também capazes de florescer tão elevado sentimento entre si, mesmo que raramente. Isso era algo que os aproximava, e muito, do real sentido de divino. Mentiras antigas eram difíceis de serem desfeitas, amores antigos mais difícil ainda. Ao deixar o local, o jovem monge a perguntou com uma curiosidade quase infantil: E agora, com base no que viu o que pretende fazer?

 Um par de asas com penas mais escuras que qualquer noite sem estrelas ou luar crescia e se abria imponente nas costas de Andiah. A leveza e beleza angelical de sua eterealidade eram agora uma lembrança distante do que ela estava disposta a se tornar. Olhando para trás, virando apenas a cabeça e sentindo suas energias renovadas fluírem por seu corpo cada vez mais denso respondeu: Encontrá-lo mais uma vez. Mas antes, tenho contas a acertar.

 Alçou voo em direção à escuridão que era fragilmente iluminada por uma cidadela muito distante. Cidade feita de bronze e onde o fogo ardia inclemente. Andiah estava cada vez mais distante de ser um anjo, e cada vez mais próxima de se tornar algo que não seria capaz de classificar. 

Anjo CaçadorOnde histórias criam vida. Descubra agora