Capítulo 4 - A caçada.

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O bater de poderosas asas arremessava a areia da praia isolada nas mais variadas direções. Tsadikiel já aguardava visitas, mas por sua reação mesclando surpresa e espanto, não eram exatamente os recém-chegados o seu primeiro palpite. Um reluzente peitoral da cor dourada cobria o corpo de pele levemente rosada. Sua espada, famosa entre anjos caçadores já aniquilara um sem fim de inimigos e mesmo embainhada evocava terror no coração dos adversários.

- Grande Adamael e seus comandados, abençoados sejam vocês! A que devo tamanha e inesperada honra? - Tsadkiel iniciou a conversa tentando quebrar o visível clima de tensão e saber o quão grave era o problema que havia se metido ao negociar com Andiah.

O grupo de cinco anjos era uma pequena falange de caça a serviço dos céus. Sem maiores sentimentos envolvidos, sendo seu único móvel o desejo de cumprir as ordens recebidas.

- Você sabe melhor do que nós mesmos o motivo de nossa visita. - Disse Adamael em um tom assertivo com sua voz grave. - Onde está a traidora caída?

- Pode estar aqui, ali ou em qualquer lugar... - O anjo negociante respondera dando de ombros.

Tsadkiel sabia que realizava um importante serviço vivendo no mundo dos humanos, negociando informações. Por mais que Andiah pudesse ser importante naquele momento, ele não era exatamente uma peça descartável aos planos celestes.

Os anjos se entreolharam parecendo não acreditar na rebeldia daquele ser frente a tão poderoso grupo.

Adamael, o líder da pequena falange, em um movimento imperceptível a olhos mundanos e a grande parte dos olhares sobrenaturais, estava às costas de seu interlocutor. Pousou suas poderosas e pesadas mãos sobre os ombros do mesmo e aproximando sua boca do ouvido de Tsadkiel disse de maneira mais do que direta: "Não me importo em nada com você. Tudo que me interessa é cumprir as ordens do alto. Passe a informação e lhe asseguro que nem eu nem nenhum dos meus guerreiros irá lhe ferir."

Não havia muito que considerar. As ações desse grupo de anjos aconteciam sob as ordens diretas do conselho de guerra dos anjos e em uma guerra, baixas são aceitáveis. Tsadkiel agora entendia que a situação era mais grave do que poderia imaginar.

- Muito bem. - disse Tsadkiel com um suspiro enquanto um mapa astral feito de luz se formava na palma de sua mão direita. - Esta é a localização de Andiah, mas lembrem-se de que ela também é uma caçadora e que sabe muito bem o que deseja e o que está fazendo.

- Vejo que tem muito bom senso. - disse Adamael, enquanto apanhava o mapa e o entregava a um de seus combatentes. - Mas sinto lhe informar que para você já não há esperanças de voltar aos céus. - Um clarão iluminara o dia nublado e Tsadikiel foi jogado de encontro ao solo.

Tentando se recompor após forte impacto, o anjo negociante se pôs de pé e encarava de frente Adamael.
- Nós anjos não podemos mentir e você não deveria ser capaz de violar os dez mandamentos!

O grupo de anjos levantava voo daquela praia e somente seu líder permanecia no solo. Agachou-se mantendo seu rosto na mesma altura do rosto de Tsadkiel.

- Obviamente que não menti, fere tudo que acredito. Porém meus comandados não o feriram e nem o irão fazer sob nenhuma circunstância, bem como eu também não irei. Contudo, agora em seu corpo a marca de Iscariotis foi entalhada. Você é um dos alvos mais procurados por todos os caçadores dos céus como um traidor desprezível.

Um sorriso no canto da boca, seguido de um firme bater de asas. A prova de que os sentimentos estavam ali, eram apenas suprimidos pelo imponente arcanjo.

- Boa sorte. - Disse Adamael antes de desaparecer no horizonte em um instante.

Em um local muitos pensamentos distante dali, Andiah batalhava sua entrada contra diversas criaturas amorfas. O céu permanentemente escuro era iluminado por relâmpagos que vez por outra o entrecortavam de ponta a ponta. A fortaleza do local, seu objetivo, estava diante de seus olhos e não importava quantos inimigos fossem atirados contra ela, nada iria fazê-la parar. Os senhores do local, cientes de que se tratava de um adversário extremamente determinado, resolveram ouvir. Afinal, por mais poderoso que fosse o invasor, nenhum ser seria capaz de ameaçá-los em seus domínios.

Visivelmente ferida e abalada Andiah empurrou as portas da fortificação, pesadas portas metálicas com inscrições em hebraico, árabe e muitas línguas que se perderam no tempo. O salão amplo iluminado por velas com dez ou mais metros de altura. No extremo oposto a porta de entrada, uma criatura distante da definição de humanoide, mas que parecia ser uma macabra amálgama de diversos seres, uma besta com três cabeças e um emaranhado de braços e membros pulsantes e vivos agindo independentes em direções variadas. Três vozes em uníssono bradaram: O que você necessita criança? Alimente nosso prazer com suas lamúrias, seus sofrimentos.

Andiah caminhou com toda a altivez que a caracterizava, era tudo que lhe restava ou assim pensava ela. Concentrava-se em seu interlocutor, tentando não reparar que dezenas de corpos, mutilados das mais variadas maneiras, estavam acorrentados à criatura e que choravam em agonia produzindo um som capaz de rachar mentes menos determinadas. Um líquido viscoso se espalhava pelo chão tocando os pés descalços da caçadora caída. A julgar pela superfície plana, o profano material se movia por vontade própria, como se vida possuísse.

- Eu desejo vingança. Pura e simples. - Andiah disse entre os dentes, sem pestanejar, porém com a voz carregada de raiva e cansaço. - Para isso preciso do Hadjar, o metal que destrói seres celestiais. Já fiz muitos acordos para chegar até aqui, não tenho muito a oferecer. Deixo-lhes avisados que se recusarem serei obrigada a tomá-lo de sua carcaça morta.

A criatura nunca sorria, sua lista de sentimentos era sempre um misto de rancor, ódio, desprezo e sadismo. Não poderia achar graça, portanto da mais vazia ameaça dirigida a ela. Por milênios os únicos ferimentos sofridos foram auto infligidos. Por alguma razão, no entanto, Andiah lhe despertava interesse que a criatura não seria capaz de entender ou explicar. E as três cabeças em uníssono se pronunciaram mais uma vez: Desejamos seus sentimentos em troca do Hadjar. Deixaremos apenas seu desejo de vingança, nenhuma lembrança, nenhuma memória. Aceita nosso acordo?

Seu único interesse nas memórias de Andiah seria para fazê-la sofrer ainda mais, afinal o negociante se alimentava do sofrimento alheio. Por alguma razão, a besta de três cabeças sentia-se compelida a entregar o metal enegrecido, mas não deixaria sair tão fácil de suas garras repletas de perversidade.

- Sim. - Ao final dessa palavra, desta simples e monossilábica palavra, tudo que ela já sentiu, todas as lembranças foram arrancadas de sua alma. A partir daquele instante Andiah era apenas uma casca vazia, movida pelo desejo de vingança. Com uma única e suicida missão em sua mente perturbada. O Hadjar, moldado na forma de uma lâmina perfeita e enegrecida, jazia em sua mão direita. O empunhava com firmeza, realizando movimentos com muita destreza para sentir o peso do material.

- O seu alvo está na Terra dos homens nesse momento. - bradou uma das cabeças com uma bocarra imensa, que salivava um líquido assemelhado ao sangue e que fervia ao tocar o chão. - Se for agora, irá encontrá-lo. - arrematou em tom provocador. Andiah, agora um anjo caído envolto em energias de vingança, apenas assentiu com a cabeça.

Dito isso um imenso círculo de chamas se formara. E Andiah atravessou o portal sendo chamuscada em suas asas negras.

Estava de volta a Terra, porém dessa vez não sentia absolutamente nada, nenhuma alegria, nenhuma satisfação, nenhum prazer. Quando seus pés tocaram o solo, nada mais a acompanhava além de sua sua nova arma e seu desejo de se vingar. O solo sentira tamanho ódio emanado, pássaros fugiram espantados aos montes, e pessoas mais sensíveis naquela região sentiram lágrimas escorrerem involuntariamente de seus olhos.

Era hora da vingança.

Anjo CaçadorOnde histórias criam vida. Descubra agora