Sangue, demissão e propagandas duvidosas de baixo orçamento

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- Você tá... tá demitido.

Pip piscou lentamente.

Ele não ouviu sequer uma frase do discurso de consolo com palavras cautelosamente selecionadas pelo rapaz tão nervoso quanto ele sentado do outro lado da mesa, nenhuma além daquelas duas últimas. Elas o puxaram para a dura realidade com agressividade, quase como uma pancada na cabeça. Nos primeiros três segundos, esteve alheio a sua própria situação, preso aos devaneios paralelos que surgiram inevitavelmente em certo ponto daquela conversa lenta e sem sentido.

Estava pensando sobre como aquele dia mal havia começado e já estava mais esquisito do que de costume. Sua mente entrou em um loop de fragmentos do sonho que teve naquela noite. Tanto sangue que quase pôde sentir o cheiro do ferro escorrendo entre seus dedos, pintando seu rosto em pequenas gotas, o gosto em sua boca... o gosto desagradável não parecia tão desagradável para ele no sonho. Quando esfaqueou um jovem, não se sentiu mal por isso, nem mesmo quando aquilo parecia real demais para ser um sonho. Geralmente, acordamos no ápice do perigo, e Pip não entendia o porquê de ter continuado. Ele deveria ter parado de esfaqueá-lo, mas parecia satisfazê-lo, ainda mais quando não era o único num círculo de pessoas – que não podia identificar – esfaqueando o jovem indefeso. Mais fragmentos corriam, agora, o cenário era diferente: uma visão apocalíptica dominava o horizonte. Pilhas de corpos sobre um mar de sangue, o silêncio, o vazio, o frio, a sensação do sangue que cobria seu corpo e o sentimento de conquista. A calmaria. Pip estremeceu em seu lugar. Definitivamente não foi sua melhor noite de sono.

- Desculpe, o quê? - Perguntou mais uma vez, incerto do que havia ouvido

Tweek remexeu o quadril na cadeira evidentemente confortável, embora estivesse longe de sentir qualquer conforto com aquela situação. Seu rosto se contorceu em incomodo e ele olhou para baixo, ansioso e cansado. Sentou-se ereto e entrelaçou os dedos sobre os papéis na mesa.

Soltou um suspiro.

- Olha, eu odeio isso, tá? Isso aqui não é pra mim. Eu tenho um sério problema, Phillip, eu odeio estar em uma posição de escolha que possa atingir outra pessoa. Semana passada eu perdi minha única tevê porque o idiota do Clyde disse que não podia perder o jogo e eu disse, "tudo bem, eu empresto pra você" e ele disse "Obrigado, Tweek. Você é o melhor. Te devolvo pela manhã". E sabe o que aconteceu? - Pip permaneceu estático. - No meio do jogo duas crianças atiraram uma pedra pela janela dele e acertaram a minha maldita tevê! Quais são as chances?! Ele só olhou pra mim com aquela cara de bunda e disse "foi mal" e largou o que sobrou dela na minha sala. Toda noite eu sento no sofá, olho pra ela por dez minutos e choro. E sabe qual é a melhor parte? Eu nem assisto tevê.

Tweek suava. Ele estava tendo um ataque de pânico. Pip pareceu acordar dessa vez.

- Tudo bem, Tweek. Não é culpa sua, você... só segue ordem, eu entendo. Respira.

Ele o fez.

- Desculpa. É meu terceiro dia no Recursos Humanos e agora eu entendo porque ninguém queria esse cargo, mesmo pagando melhor.

Pip virou o olhar. Um janelão de vidro ao seu lado lhe proporcionava uma belíssima visão de uma pequena cidade, mórbida e indiferente à mais uma segunda-feira. A cidade inteira era um Garfield.

- Precisa mesmo desse dinheiro?

Tweek encolheu os ombros.

- Preciso de uma tevê nova - Pip voltou-se para ele.

- Achei que não assistia.

O corpo de Tweek tensionou, e mais uma vez se remexeu na cadeira, tentando mantê-la no lugar. O silêncio instalou-se com frieza.

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