Trauma, filósofia e explosões

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– Ei, ei. Pip! Calma. Tá indo pra onde? – Chamou Damien.

– Pra minha casa, minha cama, meu maldito gato...

– Mas eu acabei de chegar.

Os passos de Phillip, antes corriqueiros e raivosos, pararam abruptamente em meio ao breu, ele sequer notou estar no meio de um bosque, tampouco teve tempo para se tremer com o frio. Quando se virou para Damien, lento e tenso, o anticristo imaginou ter falhado em ler a situação.

Uma coruja observava-os, lobos uivavam e a lua estava colapsando com a terra. Eles ficaram ali, à mercê do silêncio desconfortável e das folhas secas se quebrando sob o pé de Pip.

– Vai dizer que não estava com saudade, hein? – O tom de Damien era cômico, mas a pergunta não.

Pip riu.

– Você tá brincando?

Damien não respondeu, nem parecia entender a pergunta.

Algo acontecia na mente de Pip.

Uma vez, voltando do trabalho, ouviu crianças na rua cantando uma melodia familiar, mas esquecida, tão esquecida que com ela veio uma bagagem de memórias. Memórias reprimidas, sua terapeuta da época explicou – financiada pelo plano de saúde da empresa. Entre tios abusivos, testemunha de assassinatos e gentilezas de intenções duvidosas, estava Damien. Meu Deus, o quão fundo ele teria enterrado Damien? E por que voltou? Por que era tão importante a ponto de machucar tanto? a ponto do seu próprio cérebro considera-lo uma bomba? Ela disse que Damien teria sido sua primeira experiência de confiança, o abandono foi a violência que o distanciou da sua consciência, para seu próprio bem.

Pip entrou em um bar pela primeira vez naquela noite.

– Da última vez que nos vimos você me usou, e então literalmente abriu um portal pro inferno. Espíritos me atacaram, me incendiaram até eu pipocar que nem fogos de artifícios no céu.

Damien pensou e pensou mais um pouco, estreitando os olhos.

– Se você virou fogos de artifício, como ainda tá vivo?

– Eu não sei, Damien. Como eu estou? Me diga você.

– Não acho que essa parte tenha acontecido.

Soou certo disto. Pip, não completamente convencido, suspirou.

– Tanto faz. Não muda o fato de que você me traiu, e de certa forma, tentou me matar.

– Mas não matei.

– E eu deveria te agradecer?

– Não!

Pip voltou a andar, seus pés doíam e o frio enfim penetrou a rígida barreira de raiva que o aquecia até momentos atrás, as pernas finas fraquejavam. A vulnerabilidade, subitamente, transparência até no seu andar.

– Eu só queria me encaixar.

– E eu só queria um amigo! – Rebateu Pip, magoado.

– Eu sei, e eu sinto muito!

Outra pausa. Pip olhou para trás com seus olhos murchos, e então voltou a andar.

– Eu também.

Damien continuou seguindo.

Pip estava no piloto automático, andando e andando, exausto e sem perceber pois sua mente estava tão distante que não reconheceria seu corpo se olhasse para baixo, nem sentiria se tentasse – talvez fosse frio, talvez a dor fosse maior do que havia se permitido sentir. Merda, ele só queria um emprego! Só queria seu emprego de volta, que seu apartamento de merda não custasse mais que as despesas e menos que um plano de saúde, e assim ele pudesse ter um. Queria que sua tevê tivesse mais polegadas, que seu gato não levasse tripas para a cama, que não tivesse que ir na próxima reunião do AA com peso na consciência porque não estava mais sóbrio ou que tivesse uma relação melhor com as pessoas que não fosse sobre dependência emocional, viver para satisfaze-las para não ter que lidar com um abandono doloroso e inesperado mais tarde mesmo que no fim do dia não confiasse em ninguém, nem mesmo em si mesmo.

Personal JesusOnde histórias criam vida. Descubra agora