As Rolinhas

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As cidades, como conhecemos, haviam morrido. Os gigantes de concreto sangraram verde no último episódio de toda a existência humana. As ruas vazias, os carros abertos, a relva pomposa, as árvores aqui e ali, ocupando o posto cuja ardente fumaça do carbono uma vez ocupou. Não haviam vacas ou ovelhas no campo, a mãe natureza parecia não querer dar outra oportunidade para aqueles dispostos a fazer o próprio império. Haviam apenas pássaros, armados com os pés, leves e pequeninos.

O casal de rolinhas voava entre os antigos bastiões, o voo tímido era seguido de pousos repentinos para descansar e fazer carinho, tudo pouco ou quase nada era interrompido naqueles dias, sem medo de gatos ou gaviões. Suas vidas eram simples; comiam e voavam por aí. Era conhecimento popular que todos eram devotos ao sexo, viviam por isso: voar, sexo, filhos, morrer. Cantar era apenas um instrumento para obter prazer. Os assovios eram nada mais nada menos que o chamar mais primitivo para continuar a espécie. Não que houvesse prazer, era apenas a lei.

Pousavam eles sobre seu ninho vazio, era aquela época do ano, os ovinhos iam chegar. O trabalho árduo para o montar o ninho começou, e todo dia era dia de trabalho. O carinho tornou-se mais raro, entretanto, mesmo que odiassem olhar um na cara do outro, o trabalho estava acima de tudo e, infelizmente, amar fazia parte. "Trabalho" não existia mais, essa palavra aqui serve mais como uma analogia já que, por estarem na natureza, não tinham um trabalho. Era só a ordem natural, claro, a ordem natural que todas as coisas deveriam seguir, a ordem natural de toda fera, claro, o trabalho de todo animal: comer, andar, reproduzir. Com certeza todos os animais nascem com a mesma tarefa.

As rolinhas assumiam que todos os outros nasciam em ninhos, mas sabiam que nem todos nasciam no mesmo prédio. Olhavam ao redor em sua torre concreto com indiferença. Não dava mais para pôr o ninho em outro canto, não havia mais fuga. Quando os devidos rituais aconteceram, quando o ninho estava pronto e as chuvas de verão chegaram, os ovos estavam lá. Ela cuidava dos ovos, só o vento sabe o que ele fazia, mas voltava de noite. As rolinhas fazem mais filhotes todos os meses, era sempre época de reprodução, mas a essa altura, sempre com o mesmo parceiro. Nenhuma das rolinhas realmente sentia-se bem com o parceiro, não sabe-se ao certo a razão de ficarem juntos, mas ficavam.

Choveu naquela sexta-feira, e os ovos chocaram. Enquanto mexia cuidadosamente com os filhotes que trariam-lhe toda a felicidade do mundo, já que agora poderia cuidar de algo que a amaria de verdade, a mamãe rolinha viu o papai rolinha chegar da chuva, não dava para ir fazer sei-lá-o-que hoje. Os dois logo juntaram-se nas beiradinhas do ninho para observar o milagre da natureza acontecer, cada um com suas próprias intenções; papai queria que aprendessem a fazer sei-lá-o-que, mamãe queria que fossem os melhores. Entretanto, dos três ovos, apenas um chocou. O filho pródigo seria o mais amado, mas nasceu com braços. Braços de carne, braços profanos e esquisitos, revestidos em pele nua e crua onde estariam as asas. Do sangue efervescente, a criança de ouro levantou-se, após dobrar o pescoço dos pais como quem dobra um canudo, olhou o horizonte chuvoso e seu olhar após enxergar cada ninho foi tudo, menos indiferente. Decidiu que iria voar, ó não.

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