8 Arma de Escolha

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Ela estava surpresa demais para gritar. A sensação de queda foi a pior parte; o coração voou
até a garganta e o estômago virou água. Ela esticou os braços, tentando agarrar alguma coisa,
qualquer coisa que a desacelerasse.
Ela fechou as mãos em galhos. Folhas foram arrancadas. Ela caiu no chão, com força, o
quadril e o ombro atingiram um solo compactado. Ela rolou para o lado, respirando fundo,
devolvendo o ar aos pulmões. Estava começando a sentar quando alguém aterrissou em cima
dela.
Ela foi derrubada para trás. Uma testa bateu na dela, seus joelhos nos de alguém. Presa por
braços e pernas, Clary tossiu cabelo (não era sequer o dela) para fora da boca e tentou se
livrar do peso que parecia esmagá-la.
— Ai — disse Jace no ouvido de Clary, em tom indignado. — Você me deu uma
cotovelada.
— Bem, você pousou em cima de mim.
Ele se levantou e olhou para ela, placidamente. Clary podia ver o céu azul sobre a cabeça
dele, um pedaço de um galho de árvore e o canto de uma casa cinza de ripa de madeira.
— Você não me deixou muita escolha, não é mesmo? — perguntou ele. — Não depois que
resolveu pular alegremente pelo Portal, como se estivesse pulando no metrô da linha F. Você
tem sorte de não termos ido parar dentro do rio.
— Não precisava vir atrás de mim.
— Precisava, sim — ele disse. — Você é inexperiente demais para se proteger em uma
situação hostil sem mim.
— Que gracinha! Talvez eu perdoe você.
— Me perdoar? Pelo quê?
— Por ter me mandado calar a boca.
Ele franziu o cenho.
— Eu não mandei... bem, mandei, mas você estava...
— Deixe pra lá. — O braço dela, preso atrás das costas, estava começando a doer.
Rolando para o lado a fim de livrá-lo, ela viu a grama marrom de um gramado morto, uma    cerca de arame e um pouco mais da casa cinza de ripa de madeira, agora estranhamente
familiar.
Ela congelou.
— Eu sei onde estamos.
Jace parou de fazer barulho.
— O quê?
— Esta é a casa do Luke. — Ela se sentou, empurrando Jace para o lado. Ele rolou
graciosamente até ficar de pé, e esticou a mão para ajudá-la a se levantar. Ela o ignorou e
cambaleou para cima, sacudindo o braço dormente.
Eles estavam em frente a uma pequena casa cinza desordenada, aninhada entre outras casas
que alinhavam a costa de Williamsburg. Uma brisa soprava do rio, fazendo com que um
pequeno anúncio balançasse sobre os degraus de tijolo da entrada. Clary observou Jace
enquanto ele lia as palavras em voz alta:
— Livros Garroway. Usados, novos e fora de catálogo. Fechado aos sábados. — Ele
olhou para a porta escura da frente, a maçaneta trancada com um cadeado enorme.
Correspondências de alguns dias sobre o tapete na entrada, intocadas. Ele olhou para Clary.
— Ele mora em uma livraria?
— Ele mora atrás da loja. — Clary olhou para cima e para baixo da rua vazia, que era
cercada em uma ponta pelo arco da Willamsburg Bridge, e por uma fábrica de açúcar
abandonada na outra. Do outro lado do rio, o sol estava se pondo atrás dos prédios de
Manhattan, envolvendo-os em dourado. — Jace, como viemos parar aqui?
— Através do Portal — disse Jace, examinando o cadeado. — Leva você ao lugar em que
estiver pensando.
— Mas eu não estava pensando neste lugar — argumentou Clary. — Eu não estava
pensando em lugar nenhum.
— Você devia estar. — Ele encerrou o assunto, parecendo desinteressado. — Então, como
já estamos aqui mesmo...
— O quê?
— O que você quer fazer?
— Quero ir embora, eu acho — disse Clary, amargamente. — Luke me disse para não vir
aqui.
Jace balançou a cabeça.
— E você simplesmente aceitou isso?
Clary fechou os braços em torno de si. Apesar do calor do dia, ela estava com frio.
— E eu tenho escolha?
— Sempre temos escolhas — disse Jace. — Se eu fosse você, estaria bem curioso a
respeito de Luke agora. Você tem a chave da casa?Clary balançou a cabeça.
— Não, mas às vezes ele deixa a porta dos fundos destrancada — ela apontou para o beco
estreito entre a casa de Luke e a vizinha. Lixeiras de plástico estavam organizadamente
enfileiradas ao lado de pilhas de jornais e uma banheira plástica de garrafas de refrigerante
vazias. Ao menos Luke continuava reciclando.
— Você tem certeza de que ele não está em casa? — perguntou Jace.
Ela olhou para o meio-fio vazio.
— Bem, a caminhonete não está aqui, a loja está fechada e todas as luzes estão apagadas.
Eu diria que provavelmente não.
— Então, vá na frente.
A rua estreita entre as casas acabava em uma cerca. Envolvia o pequeno jardim dos
fundos, em que as únicas plantas florescendo pareciam ser as ervas daninhas que cresciam
entre as pedras do pavimento.
— Vamos pular — disse Jace, colocando a ponta da bota em um buraco na grade. Ele
começou a escalar. A grade fez um barulho tão grande que Clary olhou em volta nervosa, mas
não havia luzes acesas na casa dos vizinhos. Jace chegou ao topo da grade e saltou para o
outro lado, aterrissando nos arbustos, acompanhado por um uivo ensurdecedor.
Por um instante, Clary achou que ele tivesse pousado em um gato de rua. Ela ouviu Jace
gritar surpreso ao cair para trás. Uma sombra escura — grande demais para ser felina —
explodiu do arbusto e correu pelo jardim, mantendo-se abaixado. Levantando-se rapidamente,
Jace foi atrás dele, com um olhar assassino.
Clary começou a escalar. Ao passar a perna sobre o topo da grade, os jeans de Isabelle
prenderam em um fio de arame solto e rasgaram na lateral. Ela pulou para o chão, os sapatos
atingindo a terra macia, exatamente quando Jace gritou, triunfante.
— Peguei! — Clary virou para ver Jace sentado em cima do intruso, cujos braços estavam
sobre a cabeça. Jace o agarrou pelos pulsos. — Vamos, deixe-me ver o seu rosto...
— Saia de cima de mim, seu babaca pretensioso — disparou o intruso, atacando Jace. Ele
se debateu até conseguir sentar, os óculos derrubados.
Clary parou onde estava.
— Simon?
— Ah, meu Deus — disse Jace, soando decepcionado. — E eu achando que tinha
conseguido alguma coisa interessante.
— Mas o que você estava fazendo nos canteiros de Luke? — perguntou Clary, tirando folhas
do cabelo de Simon. Ele recebeu o gesto com muita má vontade. De alguma forma, quando ela pensou no reencontro com Simon, quando isso tudo acabasse, ele estaria com um humor
melhor. — É isso que eu não estou entendendo.
— Tudo bem, chega. Eu posso arrumar meu próprio cabelo, Fray — disse Simon,
desviando-se do toque dela. Eles estavam sentados em um dos degraus da varanda dos fundos
de Luke. Jace se colocara no canto da varanda e estava fingindo ignorá-los completamente
enquanto usava a estela para limar as pontas das unhas. Clary ficou imaginando se a Clave
aprovaria.
— Quero dizer, Luke sabia que você estava aqui? — ela perguntou.
— É claro que ele não sabia que eu estava aqui — disse Simon, irritado. — Eu nunca
perguntei, mas ele com certeza tem uma política rígida no que se refere a adolescentes
quaisquer escondidos nos canteiros da casa dele.
— Você não é um qualquer; ele o conhece. — Ela queria esticar a mão e tocar a bochecha
dele, que ainda estava sangrando um pouquinho após ter sido ligeiramente cortada por um
galho. — O mais importante é que você está bem.
— Que eu estou bem? — Simon riu, um som afiado e descontente. — Clary, você faz ideia
do que eu passei nesses últimos dias? A última vez em que a vi, você estava correndo do Java
Jones como um morcego fugindo do inferno, e depois simplesmente... desapareceu. Não
atendeu o celular, e o seu telefone de casa estava desligado, depois Luke me disse que você
estava com alguns parentes no norte do estado quando eu sei que você não tem parente algum.
Eu achei que tivesse feito alguma coisa que tivesse irritado você.
— Mas o que você poderia ter feito? — Clary tentou pegar a mão dele, mas ele a puxou
sem olhar para ela.
— Não sei — ele disse. — Alguma coisa.
Jace, ainda entretido com a estela, deu uma risada baixa para si mesmo.
— Você é o meu melhor amigo — disse Clary. — Eu não estava chateada com você.
— É, bem, você também claramente não se preocupou em pegar o telefone para me falar
que estava por aí com um pseudogótico com o cabelo pintado de louro que provavelmente
conheceu no Pandemônio — disse Simon, amargamente. — Depois de eu ter passado os
últimos três dias imaginando que você estava morta.
— Eu não estava com ele — disse Clary, grata por estar escuro o suficiente para encobrir
o sangue que enrubesceu seu rosto.
— E o meu cabelo é naturalmente louro — disse Jace. — Só para deixar claro.
— Então o que você fez nos últimos três dias? — perguntou Simon, os olhos escuros
desconfiados. — Você realmente tem uma tia-avó Matilda que contraiu gripe aviária e
precisava de cuidados especiais?
— Foi isso que Luke disse?
— Não. Ele apenas disse que você tinha ido visitar alguém da família que estava doente, e que o seu telefone provavelmente não funcionava no campo. Não que eu tenha acreditado
nisso. Depois que ele me expulsou pela varanda da frente, eu circulei a casa e olhei pela
janela de trás. Assisti enquanto ele preparava uma maleta verde como se fosse passar o fim de
semana fora. Foi então que resolvi ficar para vigiar as coisas.
— Por quê? Porque ele fez uma mala?
— Ele encheu a mala de armas — disse Simon, esfregando o sangue da bochecha com a
manga da camiseta. — Facas, algumas adagas, até uma espada. E o mais engraçado é que
algumas das armas pareciam estar brilhando. — Ele olhou de Clary para Jace, e para Clary
outra vez. Sua voz estava tão afiada quanto uma das facas de Luke. — Agora você vai dizer
que eu estava imaginando aquilo tudo?
— Não — disse Clary. — Eu não vou dizer isso. — Ela olhou para Jace. O último feixe
de luz do pôr do sol refletia um brilho dourado em seus olhos. Então disse: — Vou contar a
verdade para ele.
— Eu sei.
— Você vai tentar me impedir?
Ele olhou para a estela que tinha nas mãos.
— Meu juramento à Clave me impede — ele disse. — Você não está impedida por
juramento algum.
Ela voltou-se novamente para Simon, respirando fundo.
— Muito bem — ela disse. — Eis o que você precisa saber.
O sol já se pusera completamente atrás do horizonte, e a varanda estava completamente escura
quando Clary parou de falar. Simon havia escutado a longa explicação com uma expressão
praticamente impassível, apenas franzindo o rosto quando ela chegou à parte do demônio
Ravener. Quando acabou de contar, ela limpou a garganta, repentinamente desesperada por um
copo d’água.
— Então — ela disse —, alguma pergunta?
Simon levantou a mão.
— Ah, eu tenho perguntas. Muitas.
Clary respirou fundo.
— Muito bem, vá em frente.
Ele apontou para Jace.
— Bem, ele é um... como você chama pessoas como ele mesmo?
— Ele é um Caçador de Sombras — disse Clary.
— Um caçador de demônios — explicou Jace. — Eu mato demônios. Não é muito complicado, na verdade.
Simon olhou novamente para Clary.
— Sério? — Ele estava com os olhos franzidos, como se estivesse esperando que ela lhe
dissesse que nada daquilo era verdade e que Jace era de fato um louco foragido que ela havia
decidido acolher por bondade.
— Sério.
Simon tinha um olhar decidido no rosto.
— E também existem vampiros? Lobisomens, feiticeiros, tudo isso?
Clary mordeu o lábio inferior.
— É o que ouvi.
— E você também os mata, Jace? — perguntou Simon, dirigindo a pergunta a Jace, que
voltara a guardar a estela no bolso e estava examinando as unhas à procura de defeitos.
— Só quando se comportam mal.
Por um instante, Simon apenas ficou sentado olhando para os próprios pés. Clary imaginou
se dar essas informações a ele tinha sido a atitude errada. Ele tinha um senso prático mais
forte do que qualquer um que Clary conhecia; podia odiar saber de algo assim, uma coisa sem
qualquer explicação lógica. Ela se inclinou para a frente, ansiosa, exatamente quando Simon
levantou a cabeça.
— Isso é magnífico — ele disse.
Jace pareceu tão espantado quanto Clary se sentia.
— Magnífico?
Simon anuiu com entusiasmo o bastante para fazer com que os cachos pretos balançassem
sobre a testa.
— Totalmente. É como RPG, só que de verdade.
Jace estava olhando para Simon como se ele fosse uma espécie estranha de inseto.
— É como o quê?
— É um jogo — Clary explicou. Ela se sentiu ligeiramente envergonhada. — As pessoas
fingem ser magos e elfos, e matam monstros e coisas desse tipo.
Jace parecia abismado.
Simon sorriu.
— Você nunca ouviu falar em RPG? Em Dungeons and Dragons?
— Já ouvi falar em dungeons, masmorras — disse Jace. — Também em dragons,
dragões. Apesar de estarem praticamente extintos.
Simon pareceu decepcionado.
— Você nunca matou um dragão?
— Ele provavelmente também nunca encontrou uma mulher-elfo gata de um metro e oitenta
com biquíni de pele — disse Clary, irritada. — Dá um tempo, Simon.
— Elfos de verdade só têm vinte centímetros de altura, aproximadamente — disse Jace.
— Além disso, eles mordem.
— Mas vampiras são gatas, não são? — disse Simon. — Quero dizer, algumas vampiras
são gatinhas, não são?
Por um instante, Clary temeu que Jace fosse voar pela varanda e esganar Simon até ele
perder os sentidos. Em vez disso, ele pensou na pergunta.
— Algumas são, acho.
— Fantástico — disse Simon. Clary concluiu que preferia quando eles estavam brigando.
Jace saiu da grade da varanda.
— Então, vamos revistar a casa ou não?
Simon se levantou.
— Estou dentro. O que estamos procurando?
— Nós? — disse Jace, com delicadeza sombria. — Não me lembro de ter convidado
você.
— Jace — Clary disse, irritada.
O canto esquerdo de sua boca se curvou.
— Só estava brincando. — Ele chegou para o lado para deixar o caminho livre para a
porta. — Vamos?
Clary tateou a porta no escuro, em busca da maçaneta. Ela abriu, ativando a luz da
varanda, que iluminou a entrada. A porta que levava à livraria estava fechada. Clary mexeu na
maçaneta.
— Está trancada.
— Permitam-me, mundanos — disse Jace, colocando-a de lado gentilmente. Ele retirou a
estela do bolso e colocou-a na porta. Simon assistiu com certo despeito. Nem todas as
vampiras do mundo, Clary suspeitou, fariam com que ele gostasse de Jace.
— Ele é uma coisa, não é? — resmungou Simon. — Como você aguenta?
— Ele salvou a minha vida.
Simon olhou para ela rapidamente.
— Como...
Com um clique, a porta se abriu.
— Lá vamos nós — disse Jace, colocando a estela de volta no bolso. Clary viu a Marca
na porta, logo acima de sua cabeça, desbotar enquanto a atravessavam. A porta dos fundos se
abriu em um pequeno armazém, as paredes nuas com tinta descascando. Caixas de papelão
empilhadas por todos os lados, o conteúdo de cada uma assinalado com marcadores:
“Ficção”, “Poesia”, “Culinária”, “Interesse local”, “Romance”.
— O apartamento é por ali — Clary caminhou em direção à porta para a qual apontou, no lado oposto da sala.
Jace a pegou pelo braço.
— Espere.
Ela olhou nervosa para ele.
— Alguma coisa errada?
— Não sei. — Ele se colocou entre duas fileiras de caixas e assobiou. — Clary, acho que
você deveria vir até aqui ver isso.
Ela olhou em volta. O armazém estava pouco iluminado e a única luz que entrava pela
janela era a da varanda.
— Está tão escuro...
Acendeu-se uma luz, iluminando toda a sala com fulgor brilhante. Simon virou a cabeça
para o lado, piscando os olhos.
— Ai.
Jace sorriu. Ele estava no topo de uma caixa selada, com a mão levantada. Alguma coisa
brilhava na palma de sua mão, a luz escapava por entre os dedos curvados.
— Pedra enfeitiçada — ele disse.
Simon murmurou alguma coisa para si. Clary já estava passando pelas caixas, indo em
direção a Jace. Ele estava atrás de uma pilha de livros misteriosos e a pedra enfeitiçada
emitia um brilho estranho sobre o rosto dele.
— Veja isso — disse ele, indicando um espaço mais alto na parede. Inicialmente, ela
pensou que ele estivesse apontando para um par de arandelas ornamentais. Enquanto seus
olhos se ajustavam, ela percebeu que eram rodelas de metal presas a correntes curtas, cujas
pontas estavam fincadas na parede.
— Por acaso são...
— Algemas — disse Simon, passando pelas caixas. — Isso é...
— Não diga “pervertido”. — Clary lançou-lhe um olhar de aviso. — Estamos falando de
Luke.
Jace levantou a mão para passar os dedos na parte interior de uma das rodelas de metal.
Ao abaixá-la, os dedos estavam sujos com um pó vermelho-amarronzado.
— Sangue. E vejam. — Ele apontou para a parede ao lado da qual as correntes estavam
fincadas; o papel de parede parecia saltar para fora. — Alguém tentou arrancar da parede. E
com muita força, ao que tudo indica.
O coração de Clary começou a bater forte no peito.
— Você acha que está tudo bem com Luke?
Jace abaixou a pedra enfeitiçada.
— Acho melhor descobrirmos.
A porta do apartamento estava destrancada. Levava à sala de Luke. Apesar das centenas de livros na loja, havia outras centenas na casa. Prateleiras de livros iam até o teto. Nelas, os
volumes ficavam em “duas filas”, uma bloqueando a outra. A maioria era de poesia ou ficção,
com alguns de fantasia e mistério no meio. Clary se lembrou de ter devorado toda a coleção
As Aventuras de Prydain, deitada na cadeira abaixo da janela de Luke enquanto o sol se punha
sobre o rio.
— Acho que ele ainda está por aqui — disse Simon, na porta da pequena cozinha de Luke.
— A cafeteira está ligada e tem café nela. Quente ainda.
Clary espiou pela porta da cozinha. As louças estavam empilhadas na pia. Os casacos de
Luke, cuidadosamente pendurados nos cabides do armário de casacos. Ela seguiu pelo
corredor e abriu a porta do quarto. Parecia o mesmo de sempre, a cama desarrumada com a
colcha cinza e os travesseiros, a mesa de cabeceira cheia de trocados. Ela virou de costas.
Uma parte dela tinha certeza de que entraria e encontraria o lugar devastado, e Luke amarrado
ou coisa pior. Agora ela não sabia o que pensar.
Entorpecida, ela atravessou o corredor até o quarto de hóspedes, onde havia ficado tantas
vezes quando Jocelyn viajava a trabalho. Eles ficavam acordados até tarde vendo filmes de
terror antigos na televisão em preto e branco. Ela até deixava uma mochila com coisas extras
ali para não ter de ficar levando e trazendo roupas toda vez que voltasse para casa.
Ajoelhando-se, ela puxou a mochila de debaixo da cama pela alça verde-azeitona. Era
coberta de broches, a maioria presente de Simon. JOGADORES SE DÃO MELHOR. OTAKU
DE CAMPONESAS. AINDA NÃO SOU REI. Dentro, havia algumas roupas dobradas,
algumas calcinhas extras, uma escova de cabelo e até xampu. Graças a Deus, ela pensou, e
fechou a porta do quarto. Rapidamente, ela saiu das roupas grandes demais — e agora sujas
de grama e suor — de Isabelle, colocando uma de suas velhas calças, uma camiseta azul com
um desenho de personagens chineses na frente. Ela jogou as roupas de Isabelle na mochila,
puxou a cordinha e saiu do quarto, com a bolsa sacudindo de modo familiar entre as
omoplatas. Era bom voltar a ter alguma coisa que pertencia a ela.
Ela encontrou Jace no escritório abarrotado de livros, examinando uma mochila verde
aberta sobre a mesa. Estava, como Simon dissera, cheia de armas — facas, um chicote e algo
que parecia um disco de metal afiado.
— É um chakhram — disse Jace, levantando o olhar enquanto Clary entrava na sala. —
Uma arma sique. Você enrola no dedo indicador antes de soltar. São muito raras e difíceis de
usar. É estranho Luke ter uma. Era a arma de escolha de Hodge antigamente. Pelo menos é o
que ele diz.
— Luke coleciona coisas. Objetos de arte. Você sabe — disse Clary apontando para a
prateleira atrás da mesa, cheia de estátuas indígenas e ícones russos. Seu favorito era uma
estatueta da deusa indiana da destruição, Kali, representada com uma espada e uma cabeça decepada enquanto dançava com a cabeça para trás com os olhos fechados. Ao lado da mesa,
havia uma antiga tela chinesa, esculpida em madeira jacarandá brilhante. — Coisas bonitas.
Jace moveu o chakhram cautelosamente para o lado. Um punhado de roupas saiu da
mochila desamarrada de Luke, como se tivessem sido acrescentadas em um segundo momento.
— Aliás, acho que isso é seu.
Ele pegou um objeto retangular escondido junto com as roupas: um porta-retratos de
madeira com uma rachadura vertical no vidro. A rachadura se ampliava em linhas que
pareciam teias de aranha sobre os rostos sorridentes de Clary, Luke e Jocelyn.
— Isso é meu — disse Clary, tirando da mão dele.
— Está quebrado — observou Jace.
— Eu sei. Fui eu que fiz isso. Eu quebrei. Quando atirei no demônio Ravener. — Ela
olhou para ele, vendo a percepção que surgia no rosto de Jace. — Isso significa que Luke
esteve no apartamento depois do ataque. Talvez hoje mesmo...
— Ele deve ter sido a última pessoa a passar pelo Portal — disse Jace. — Por isso nos
trouxe aqui. Você não estava pensando em lugar algum, então ele nos mandou para o último
lugar onde havia estado.
— Dorothea foi muito legal em nos contar que ele estava lá — disse Clary.
— Ele provavelmente pagou para ela ficar quieta. Isso ou ela confia mais nele do que na
gente. O que significa que ele pode não ser...
— Gente! — Era Simon, entrando na sala em pânico. — Alguém está vindo.
Clary derrubou a foto.
— Luke?
Simon espiou o corredor, depois fez que sim com a cabeça.
— É. Mas ele não está sozinho. Dois homens estão com ele.
— Homens? — Jace atravessou a sala com alguns passos, espiou pela porta e resmungou
baixinho. — Feiticeiros.
Clary o encarou.
— Feiticeiros? Mas...
Sacudindo a cabeça, Jace recuou.
— Tem algum jeito de sair daqui? Uma porta dos fundos?
Clary balançou a cabeça. O ruído de passos no corredor já era audível, provocando
pontadas de medo em seu peito.
Jace olhou à sua volta desesperadamente. Seu olhar parou na tela de jacarandá.
— Vá para trás daquilo — ele disse, apontando. — Agora.
Clary derrubou a foto quebrada na mesa e se escondeu atrás da tela, puxando Simon
consigo. Jace estava logo atrás, com a estela em mãos. Ele mal havia se escondido atrás da
tela também quando Clary ouviu a porta se abrir, o barulho de pessoas entrando no escritório de Luke — em seguida vozes. Três homens falando. Ela olhou tensa para Simon, que estava
muito pálido, e depois para Jace, que tinha a estela erguida na mão e estava mexendo
levemente a ponta, em um formato quadrado. Enquanto observava, o quadrado clareou, como
um painel de vidro. Ela viu Simon inspirar fundo — um ruído baixinho, praticamente
inaudível — e Jace balançou a cabeça para os dois, falando sem som as seguintes palavras:
eles não conseguem nos ver, mas nós conseguimos vê-los.
Mordendo o lábio, Clary inclinou-se para a frente e espiou através da tela agora de vidro,
consciente da respiração de Simon em sua nuca. Ela enxergava a sala perfeitamente: as
prateleiras de livros, a mesa com a mochila aberta — e Luke maltrapilho e ligeiramente
curvado, com os óculos no alto da cabeça, parado ao lado da porta. Era assustador, mesmo
sabendo que ele não podia enxergá-la, pois o vidro feito por Jace era como o espelho de uma
sala de interrogatório policial: só tinha um lado.
Luke virou, olhando através da entrada.
— Sim, sintam-se livres para olhar por aí — ele disse, com o tom razoavelmente
carregado por sarcasmo. — É muito gentil da parte de vocês mostrarem interesse.
Uma risadinha baixa ecoou do canto da sala. Com um movimento impaciente de pulso,
Jace cutucou a ponta da “janela”, que abriu um pouco mais. Havia dois homens com Luke,
ambos em longas túnicas avermelhadas, com os capuzes empurrados para trás. Um deles era
magro, com um bigode cinza elegante e barba pontuda. Quando sorriu, exibiu dentes
extremamente brancos. O outro era corpulento, largo como um lutador, e tinha cabelos
avermelhados. Tinha a pele roxa e as maçãs do rosto pareciam brilhar, como se sua pele
tivesse sido esticada demais.
— Esses são feiticeiros? — Clary sussurrou suavemente.
Jace não respondeu. Ele havia ficado completamente rígido, como uma barra de ferro. Ele
está com medo que eu vá fugir, tentando surpreender a Luke , pensou Clary. Ela gostaria de
poder garantir a ele que não faria isso. Havia algo sobre aqueles dois homens, com suas capas
grossas cor de sangue, completamente assustador.
— Considere isso um check-up amigável, Graymark — disse o homem de bigode cinza.
Ele tinha um sorriso que exibia dentes tão afiados que pareciam ter sido cultivados para o
canibalismo.
— Não há nada de amigável em você, Pangborn. — Luke se sentou na ponta da mesa,
angulando o corpo de modo que a visão do sujeito ficasse bloqueada, fazendo com que ele não
enxergasse a mochila ou seu conteúdo. Agora que ele estava mais perto, Clary podia ver que o
rosto e as mãos de Luke estavam severamente feridos, os dedos arranhados e ensanguentados.
Um longo corte no pescoço desaparecia sob o colarinho. Que diabos acontecera a ele?
— Blackwell, não toque nisso, é muito valioso — disse Luke, incisivo.
O grandalhão ruivo, que pegara a estátua de Kali da estante, passou os dedos sobre ela
pensativamente.
— Que beleza — ele disse.
— Ah — disse Pangborn, tirando a estátua das mãos do colega. — Ela foi criada para
combater um demônio que não podia ser morto por nenhum deus ou nenhum homem. “Oh Kali,
minha mãe cheia de bemaventurança! Feiticeira do todo-poderoso Shiva, em vossa alegria
delirante vós dançais, batendo vossas mãos. Vós sois a Causadora de todas as causas, e nós
não somos nada além de vossos brinquedos.”
— Muito bem — disse Luke. — Não sabia que você estudava mitos indianos.
— Todos os mitos são verdadeiros — disse Pangborn, e Clary sentiu um leve calafrio
subindo pela espinha. — Ou você se esqueceu até disso?
— Não me esqueci de nada — disse Luke. Embora parecesse relaxado, Clary podia sentir
a tensão nos ombros e na boca dele. — Suponho que Valentim o tenha mandado?
— Mandou — disse Pangborn. — Ele achou que você pudesse ter mudado de ideia.
— Não há nada sobre o que mudar de ideia. Eu já disse que não sei de nada. Belas capas,
a propósito.
— Obrigado — disse Blackwell com um sorriso astuto. — Pegamos de uns feiticeiros
mortos.
— São túnicas oficiais do Acordo, não são? — perguntou Luke. — São da Ascensão?
Pagborn deu uma risada.
— Despojos de batalha.
— Vocês não têm medo de que alguém os confunda com os verdadeiros?
— Não — disse Blackwell —, quando chegarem perto.
Pangborn acariciou a ponta da túnica.
— Você se lembra da Ascensão, Lucian? — disse suavemente. — Foi um dia terrível e
maravilhoso. Você se lembra de como treinamos juntos para a batalha?
O rosto de Luke enrijeceu.
— O passado é passado. Eu não sei o que dizer a vocês, cavalheiros. Não posso ajudá-los
agora. Não sei de nada.
— “Nada” é uma palavra tão genérica, tão sem sentido — disse Pangborn, soando
melancólico. — Certamente alguém que tem tantos livros deve saber alguma coisa.
— Se você quiser saber onde encontrar uma andorinha na primavera, posso lhe indicar o
título e a referência exata. Mas se quer saber como ou onde está o Cálice Mortal que
desapareceu...
— Desapareceu pode não ser a palavra correta — ronronou Pangborn. — Escondido é
melhor. Escondido por Jocelyn.
— Pode ser — disse Luke. — Então ela ainda não te contou onde está?
— Ela ainda não recobrou a consciência — disse Pangborn, desenhando no ar com os
longos dedos da mão — Valentim está decepcionado. Ele estava ansioso pela reunião.
— Tenho certeza de que não ela não sentia o mesmo — murmurou Luke.
Pangborn murmurou algo.
— Está com ciúmes, Graymark? Talvez você não sinta por ela o que costumava sentir.
Uma tremedeira incontrolável tomou conta dos dedos de Clary, tão forte que ela teve de
entrelaçar as mãos para que parasse. Jocelyn? Será que estão falando da minha mãe?
— Eu nunca senti nada em particular por ela — disse Luke. — Dois Caçadores de
Sombra, exilados da própria espécie, você pode entender por que nos unimos. Mas não vou
tentar interferir nos planos de Valentim para ela, se é isso que o preocupa.
— Eu não diria que ele está preocupado — disse Pangborn. — Curioso, eu diria. Todos
nós tínhamos dúvida se vocês ainda estavam vivos. Ainda reconhecíveis como humanos.
Luke ergueu as sobrancelhas.
— E?
— Você parece bem o suficiente — disse Pangborn a contragosto. Ele recolocou a
estatueta de Kali na prateleira. — Havia uma criança, não havia? Uma garota.
Luke pareceu espantado.
— O quê?
— Não banque o idiota — disse Blackwell em um tom de voz que parecia um rosnado. —
Nós sabemos que a desgraçada teve uma filha. Encontraram fotos dela no apartamento, um
quarto...
— Achei que estivessem perguntando sobre crianças minhas — interrompeu Luke
calmamente. — Sim, Jocelyn teve uma filha. Clarissa. Presumo que ela tenha fugido. Valentim
os mandou para encontrá-la?
— Nós não — disse Pangborn. — Mas ele está procurando.
— Poderíamos revistar esta casa — acrescentou Blackwell.
— Eu não recomendaria — disse Luke, e desceu da mesa. Havia uma ameaça velada em
seu olhar ao encarar os dois homens, embora não tivesse mudado a expressão. — O que faz
vocês pensarem que ela ainda está viva? Eu pensei que Valentim tivesse enviado Raveners
para limpar o terreno. Com veneno de Ravener o suficiente, a maioria das pessoas vira cinzas,
sem deixar traço algum.
— Havia um Ravener morto — disse Pangborn. — Isso deixou Valentim desconfiado.
— Tudo deixa Valentim desconfiado — disse Luke. — Talvez Jocelyn o tenha matado. Ela
certamente tem essa capacidade.
Blackwell grunhiu.
— Talvez.
Luke deu de ombros.
— Prestem atenção, eu não faço ideia de onde a garota esteja, mas, se querem minha
opinião, acho que ela está morta. Ela já teria aparecido se estivesse viva. Além do mais, ela
não representa qualquer perigo. Ela tem 15 anos, nunca ouviu falar em Valentim, e não
acredita em demônios.
Pangborn riu.
— Uma criança de sorte.
— Não mais — disse Luke.
Blackwell ergueu as sobrancelhas.
— Você parece irritado, Lucian.
— Não estou irritado, estou exasperado. Não tenho a menor intenção de interferir nos
planos de Valentim, vocês entendem isso? Não sou tolo.
— Mesmo? — disse Blackwell. — É bom saber que desenvolveu algum respeito pela
própria pele com o passar dos anos, Lucian. Você nem sempre foi tão pragmático.
— Você sabe — disse Pangborn, em tom casual — que trocaríamos Jocelyn pelo Cálice?
Em perfeita segurança, bem à sua porta. Esta é uma promessa do próprio Valentim.
— Eu sei — disse Luke. — Não estou interessado. Não sei onde está o seu precioso
Cálice, e não quero me envolver em suas políticas. Eu odeio Valentim — acrescentou —, mas
o respeito. Eu sei que ele elimina todos que atravessam seu caminho. Pretendo estar fora de
alcance quando isso acontecer. Ele é um monstro, uma máquina de destruição e morte.
— Olha quem está falando — rosnou Blackwell.
— Presumo que estas sejam suas preparações para sair do caminho de Valentim? — disse
Pangborn, apontando um longo dedo para a mochila semifechada em cima da mesa. — Vai sair
da cidade, Lucian?
Luke fez que sim com a cabeça.
— Vou para o campo. Pretendo ficar quieto por um tempo.
— Nós poderíamos impedi-lo — disse Blackwell. — Fazê-lo ficar.
Luke sorriu. Transformou sua expressão. De repente, ele não era mais o homem generoso e
intelectual que empurrava Clary no balanço do parquinho e a ensinava a andar de triciclo.
Subitamente, havia algo feroz por trás daqueles olhos, algo pérfido e frio.
— Vocês poderiam tentar.
Pangborn olhou para Blackwell, que balançou a cabeça uma vez, lentamente. Pangborn
olhou mais uma vez para Luke.
— Você vai avisar se lembrar repentinamente de alguma coisa?
Luke ainda estava sorrindo.
— Você será o primeiro da lista.
Pangborn anuiu ligeiramente com a cabeça.
— Acho que vamos indo. Que o Anjo o proteja, Lucian!
— O Anjo não protege pessoas como eu — disse Luke. Ele pegou a mochila na mesa e
fechou-a. — Estão saindo, cavalheiros?
Levantando os capuzes para cobrir novamente as faces, os dois saíram da sala, seguidos
por Luke um instante mais tarde. Ele parou um instante na porta, olhando em volta como se
estivesse pensando se teria esquecido alguma coisa. Depois a fechou cuidadosamente.
Clary ficou onde estava, congelada, ouvindo a porta da frente se fechar, e o tilintar
metálico longínquo enquanto Luke recolocava o cadeado. Ela não parava de ver o olhar no
rosto de Luke, incessantemente, quando ele disse que não estava interessado no que
acontecesse à mãe dela.
Sentiu uma mão em seu ombro.
— Clary? — Era Simon, a voz hesitante, quase suave. — Você está bem?
Ela balançou a cabeça, muda. Estava longe de estar bem. Aliás, a sensação que tinha era
de que jamais voltaria a ficar bem.
— É claro que ela não está bem — disse Jace, com a voz tão afiada e fria quanto pedaços
de gelo. Ele pegou a tela e a empurrou para o lado bruscamente. — Pelo menos agora sabemos
quem mandaria um demônio atrás de sua mãe. Aqueles homens acham que ela está com o
Cálice Mortal.
Clary sentiu os lábios se contraírem em uma linha fina.
— Isso é completamente ridículo e impossível.
— Talvez — disse Jace, apoiando-se na mesa de Luke. Ele a encarou com olhos opacos
como vidro embaçado. — Você já viu esses homens alguma vez?
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Nunca.
— Lucian parecia conhecê-los. Parecia amigável com eles.
— Eu não diria amigável — disse Simon. — Diria que estavam contendo a hostilidade.
— Eles não o mataram logo de cara — disse Jace. — Acham que ele sabe mais do que
está dizendo.
— Talvez — disse Clary — ou talvez estejam apenas relutantes em matar outro Caçador
de Sombras.
Jace riu, um barulho duro, quase maldoso, que arrepiou os pelos nos braços de Clary.
— Duvido.
Ela o encarou severamente.
— O que faz você ter tanta certeza? Você os conhece?
A risada abandonou completamente a voz de Jace quando ele respondeu.


Se os conheço
? — ecoou. — Acho que você poderia dizer Isso. São Os homens
que assassinaram meu pai.

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