5 Clave e Pacto

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— Você acha que ela vai acordar alguma hora? Já faz três dias.
— Você precisa dar um tempo a ela. Veneno de demônio é forte demais, e ela é uma
mundana. Não tem os símbolos para se manter forte como nós.
— Mundanos morrem com grande facilidade, não é mesmo?
— Isabelle, você sabe que dá azar falar em morte na sala dos doentes.
Três dias, Clary pensou lentamente. Todos os seus pensamentos passaram tão intensa e
lentamente quanto sangue ou mel. Preciso acordar.
Mas ela não conseguia.
Os sonhos a prendiam, um após o outro, um rio de imagens que a levavam como uma folha
capturada em uma corrente. Ela viu a mãe deitada em uma cama de hospital, os olhos
pareciam hematomas no rosto pálido. Viu Luke, no topo de uma pilha de ossos. Jace com asas
saindo das costas, Isabelle sentada nua com o chicote enrolado em si própria como uma rede
de anéis dourados, Simon com cruzes queimadas nas palmas das mãos. Anjos, caindo e
queimando. Caindo do céu.
— Eu disse que era a mesma garota.
— Eu sei. Pequena, não é? Jace disse que ela matou um Ravener.
— É. Eu pensei que ela fosse uma fada quando a vi pela primeira vez. Mas ela não é
bonita o suficiente para ser uma fada.
— Bem, ninguém tem boa aparência quando está com sangue de demônio correndo pelas
veias. Hodge vai chamar os Irmãos?
— Espero que não. Eles me dão arrepios. Qualquer um que se automutila daquele jeito...
— Nós nos automutilamos.
— Eu sei, Alec, mas, quando o fazemos, é permanente. E nem sempre machuca...
— Se você tiver idade o suficiente. Por falar nisso, onde está Jace? Ele a salvou, não é   mesmo? Eu pensei que fosse demonstrar algum interesse pela recuperação dela.
— Hodge disse que ele não veio visitá-la desde que a trouxe para cá. Acho que não se
importa muito.
— Às vezes eu fico pensando se ele... Olhe! Ela se mexeu!
— Acho que está viva, afinal de contas. — Um suspiro. — Vou contar a Hodge.
As pálpebras de Clary pareciam ter sido costuradas. Ela imaginou se poderia sentir a pele
rasgando quando as abrisse lentamente e piscasse pela primeira vez em três dias.
Ela viu um céu límpido e azul acima, nuvens brancas fofas e anjos gorduchos com laços
dourados que voavam a partir dos pulsos. Será que estou morta?, ela imaginou. Será que o
paraíso é assim? Ela fechou os olhos com força e os abriu novamente: dessa vez ela percebeu
que o que estava encarando era um teto arqueado de madeira, pintado com uma temática
antiquada de nuvens e querubins.
Com dificuldade, ela se levantou para sentar. Todas as partes do corpo de Clary doíam,
principalmente a nuca. Ela olhou em volta. Estava em uma cama com lençóis de linho, uma de
uma longa fileira de camas similares com encosto metálico. A dela tinha uma pequena mesa de
cabeceira ao lado, com um jarro branco e uma xícara em cima. Cortinas atadas cobriam as
janelas, bloqueando a luz, apesar de ela ainda conseguir ouvir o fraco e constante ruído nova-
iorquino do trânsito vindo do lado de fora.
— Então, finalmente acordou — disse uma voz seca. — Hodge vai ficar satisfeito. Todos
nós pensamos que você morreria durante o sono.
Clary virou. Isabelle estava apoiada na cama ao lado, com os longos cabelos negros
presos em duas tranças que ultrapassavam a cintura. O vestido branco havia sido substituído
por jeans e uma camiseta azul justa, embora a joia vermelha ainda estivesse pendurada no
pescoço. As tatuagens escuras e em espiral não estavam mais lá; a pele dela era tão
homogênea quanto uma vasilha de creme.
— Sinto muito por desapontá-la. — A voz de Clary roçava como uma lixa. — Esse aqui é
o Instituto, certo?
— Sim. Você está na nossa enfermaria, não que já não tivesse concluído isso.
Uma dor repentina e aguda fez com que Clary apertasse o estômago. Ela se engasgou.
Isabelle olhou alarmada para ela.
— Você está bem?
A dor estava diminuindo, mas Clary podia sentir algo ácido no fundo da garganta e uma
leve tontura.
— Meu estômago.
— Ah, certo. Eu quase esqueci. Hodge mandou dar isso a você quando acordasse. —Isabelle pegou o jarro de cerâmica e derramou um pouco do conteúdo na xícara que
combinava, e a entregou a Clary. Estava cheia de um líquido nebuloso que tinha um vapor
singelo. Tinha cheiro de ervas e mais alguma coisa, alguma coisa rica e escura. — Você não
come nada há três dias — destacou Isabelle. — Provavelmente por isso está se sentindo mal.
Cautelosamente, Clary tomou um gole. Era delicioso, rico e encorpado, e deixava um
gosto amanteigado no final.
— O que é isso?
Isabelle deu de ombros.
— Uma das tisanas de Hodge. Sempre funcionam. — Ela deslizou para fora da cama,
aterrissando no chão com as costas arqueadas como um felino. — A propósito, sou Isabelle
Lightwood. Moro aqui.
— Eu sei o seu nome. Eu sou Clary. Clary Fray. Foi Jace quem me trouxe aqui?
Isabelle fez que sim com a cabeça.
— Hodge ficou furioso. Você derramou fluido e sangue por todo o carpete da entrada. Se
ele tivesse feito isso quando meus pais estavam aqui, certamente teria sido castigado. — Ela
olhou para Clary mais estreitamente. — Jace disse que você matou aquele demônio Ravener
sozinha.
Uma rápida imagem daquela espécie de escorpião com a face irritável e maldosa passou
pela mente de Clary; ela deu de ombros e agarrou a xícara com mais força.
— Acho que matei.
— Mas você é mundana.
— Incrível, não? — disse Clary, saboreando a leve expressão de incredulidade no rosto
de Isabelle. — Onde está Jace? Ele está por aqui?
Isabelle deu de ombros.
— Em algum lugar — ela disse. — É melhor avisar a todos que você acordou. Hodge vai
querer falar com você.
— Hodge é o tutor de Jace, certo?
— Hodge é o tutor de todos nós — disse Isabelle. — O banheiro é por ali, e eu coloquei
algumas das minhas roupas velhas penduradas no cabide de toalhas caso você queira se
trocar.
Clary foi tomar outro gole e viu que a xícara estava vazia. Ela não estava mais com fome,
nem tonta, o que era um alívio. Repousou a xícara na mesa e abraçou o lençol em torno de si.
— O que aconteceu com as minhas roupas?
— Estavam cobertas de sangue e veneno. Jace as queimou.
— Queimou? — perguntou Clary. — Me diga uma coisa, ele é sempre grosso ou guarda
isso para os mundanos? — Ah, ele é grosso com todo mundo — disse Isabelle alegremente. — É o que o faz ser
tão sexy. Isso e o fato de que já matou mais demônios do que qualquer um de sua idade.
Clary olhou para ela, perplexa.
— Ele não é seu irmão?
Isso atraiu a atenção de Isabelle. Ela deu uma gargalhada alta.
— Jace? Meu irmão? Não. De onde você tirou uma ideia dessas?
— Bem, ele mora aqui com você — disse Clary. — Não mora?
Isabelle fez que sim com a cabeça.
— Bem, mora, mas...
— Por que ele não mora com os próprios pais?
Por um breve instante, Isabelle pareceu desconfortável.
— Porque eles estão mortos.
Clary abriu a boca, surpresa.
— Eles morreram em algum acidente?
— Não. — Isabelle inquietou-se, colocando um chumaço de cabelo preto atrás da orelha
esquerda. — A mãe dele morreu quando ele nasceu. O pai foi assassinado quando ele tinha 10
anos. Jace viu tudo.
— Oh — disse Clary, com a voz fraca. — Foram... demônios?
Isabelle se levantou.
— Olhe, é melhor eu avisar a todos que você acordou. Há três dias que estão esperando
para que você abra os olhos. Ah, e tem sabão no banheiro — ela acrescentou. — Talvez você
queira se lavar. Está cheirando mal.
Clary encarou-a.
— Muito obrigada.
— Disponha.
As roupas de Isabelle eram ridículas. Clary teve de dobrar as pontas da calça jeans diversas
vezes até parar de tropeçar nelas, e o decote da camiseta vermelha só exaltava a falta do que
Eric chamaria de airbags.
Ela se arrumou em um pequeno banheiro, com uma barra de sabonete de lavanda.
Secando-se com uma toalha de mão branca, deixou os cabelos molhados soltos e
embaraçados, mas perfumados. Ela semicerrou os olhos para enxergar o próprio reflexo no
espelho. Havia um hematoma roxo na bochecha esquerda, e os lábios estavam secos e
inchados.
Tenho que ligar para Luke, ela pensou. Certamente havia um telefone aqui em algum
lugar. Talvez deixassem que ela o utilizasse depois de falar com Hodge.
Ela encontrou os tênis repousados ao pé da cama da enfermaria, com as chaves amarradas
nos cadarços. Deslizando os pés para dentro deles, ela respirou fundo e saiu à procura de
Isabelle.
O corredor do lado de fora da enfermaria estava vazio. Clary olhou para baixo, perplexa.
Parecia o tipo de corredor em que ela às vezes se encontrava em pesadelos, sombrio e
infinito. Lâmpadas de vidro em forma de rosas penduravam-se em intervalos nas paredes, e o
ar cheirava a poeira e cera de vela.
A distância, ela podia ouvir um barulho fraco e delicado, como sinos balançando com uma
tempestade. Ela partiu lentamente pelo corredor, passando a mão na parede. O papel de
parede vitoriano estava desbotado pelo tempo, cor de vinho cinza-claro. Cada um dos lados
do corredor era alinhado com portas fechadas.
O som que ela estava seguindo foi aumentando. Agora podia identificá-lo como o barulho
de um piano sendo tocado com uma habilidade desconexa — porém inegável —, mas ela não
conseguia identificar a música.
Dobrando a esquina, ela chegou a uma entrada, a porta estava completamente aberta.
Espiando o lado de dentro, ela viu o que era: sem dúvida, uma sala de música. Um piano de
cauda estava em um dos cantos, e fileiras de cadeiras estavam alinhadas na parede oposta.
Uma harpa coberta ocupava o centro da sala.
Jace estava sentado ao piano, os dedos esguios passeavam velozmente pelas teclas. Ele
estava descalço, usando jeans e uma camiseta cinza, os cabelos claros bagunçados como se
ele tivesse acabado de acordar. Observando os movimentos rápidos e convictos das mãos do
menino, Clary se lembrou da sensação de ter sido erguida por aquelas mãos, cujos braços
seguravam-na pela escada, e as estrelas no céu, que pareciam uma chuva de fios prateados.
Ela deve ter feito algum barulho, porque ele se virou no banco, piscando os olhos nas
sombras.
— Alec? — ele perguntou. — É você?
— Não. Sou eu. — Ela deu alguns passos para dentro da sala. — Clary.
As teclas do piano chacoalharam quando ele se levantou.
— Nossa própria Bela Adormecida. Quem finalmente deu o beijo para você acordar?
— Ninguém. Eu acordei sozinha.
— Tinha alguém com você?
— Isabelle, mas ela saiu para buscar alguém, Hodge, eu acho. Ela me disse para esperar,
mas...
— Eu deveria tê-la alertado sobre o seu hábito de nunca fazer o que te mandam. — Jace
franziu os olhos para ela. — Essas são as roupas de Isabelle? Ficaram ridículas em você.
— Bem, afinal você queimou as minhas roupas. — Isso foi meramente uma medida de precaução. — Ele fechou o piano. — Vamos, eu
levo você até Hodge.
O Instituto era enorme, um vasto espaço cavernoso, que parecia menos projetado de acordo
com um espaço plano e mais como um espaço naturalmente cavado em uma pedra pela
passagem de água e dos anos. Através de portas entreabertas, Clary viu incontáveis quartinhos
idênticos, cada um com uma cama simples, uma mesa de cabeceira e um grande armário de
madeira aberto. Arcos claros de pedras erguiam os tetos altos, muitos deles cuidadosamente
esculpidos com pequenas figuras. Ela percebeu algumas temáticas repetidas: anjos e espadas,
sóis e rosas.
— Por que esse lugar tem tantos quartos? — perguntou Clary. — Eu pensei que fosse um
instituto de pesquisa.
— Essa é a ala residencial. Juramos oferecer segurança e alojamento a qualquer Caçador
de Sombras que requisitar. Podemos abrigar até duzentas pessoas aqui.
— Mas a maioria dos quartos está vazia.
— As pessoas vêm e vão. Ninguém fica por muito tempo. Geralmente somos só nós: Alec,
Isabelle, Max, os pais deles, Hodge e eu.
— Max?
— Você não conheceu a formosa Isabelle? Alec é o irmão mais velho dela. Max é o mais
novo, mas ele está viajando com os pais.
— De férias?
— Não exatamente — Jace hesitou. — Você pode pensar neles como diplomatas
estrangeiros, e isso aqui como uma embaixada, mais ou menos. Agora eles estão no país natal
dos Caçadores de Sombras, resolvendo algumas negociações de paz muito delicadas. Eles
levaram Max junto porque ele é muito novo.
— País natal dos Caçadores de Sombras? — A cabeça de Clary estava girando. — Como
se chama?
— Idris.
— Nunca ouvi falar.
— Claro que não. — Aquela superioridade irritante ainda embalava a voz de Jace. — Os
mundanos não sabem nada a respeito. Existem sortilégios, feitiços protetores, por todas as
fronteiras. Se você tentasse cruzar as fronteiras de Idris, simplesmente seria transportada de
uma fronteira para a próxima. Você nem ficaria sabendo.
— Então não consta nos mapas?
— Não nos mundanos. Para os nossos propósitos, você pode considerá-lo um pequeno
país entre Alemanha e França. — Mas não tem nada entre a Alemanha e a França. Só a Suíça.
— Exatamente — disse Jace.
— Suponho que já tenha estado lá. Em Idris, quero dizer.
— Cresci lá. — A voz de Jace era neutra, mas alguma coisa no seu tom deixou claro que
mais perguntas nesse sentido não seriam bem recebidas. — A maioria de nós cresceu lá.
Existem, obviamente, Caçadores de Sombras no mundo inteiro. Temos que estar em todos os
lugares, porque as atividades demoníacas estão em todos os lugares. Mas, para um Caçador de
Sombras, Idris é sempre “sua casa”.
— Como Mecca ou Jerusalém — disse Clary, pensativa. — Então a maioria de vocês é
criada lá, e depois, quando crescem...
— Somos mandados para onde precisam de nós — disse Jace sucintamente. — E existem
alguns, como Isabelle e Alec, que crescem longe do país natal, pois os pais estão longe. Com
todos os recursos do Instituto aqui, o treinamento de Hodge... — Ele parou de falar. — Essa é
a biblioteca.
Eles chegaram a um par de portas arqueadas. Um gato persa azul com olhos amarelos
estava deitado à frente delas. Ele levantou a cabeça enquanto os dois se aproximavam e
bocejou.
— Olá, Church — disse Jace, acariciando a cabeça do gato com o pé descalço. As pupilas
dos olhos do gato se encolheram de satisfação.
— Espere aí — disse Clary. — Alec, Isabelle e Max... eles são os únicos Caçadores de
Sombras da sua idade, os únicos com quem você socializa?
Jace parou de acariciar o gato.
— São.
— Isso deve ser muito solitário.
— Tenho tudo de que preciso. — Ele abriu as portas. Após um instante de hesitação, ela o
seguiu.
A biblioteca era circular, com um teto cônico em uma parte, como se tivesse sido construída
no interior de uma torre. As paredes eram alinhadas com livros, as prateleiras tão altas que
escadas enormes eram postas em intervalos ao longo do recinto. E também não havia livros
normais — eles eram encadernados em couro e veludo, enfeitados com cadeados de pedras
brilhantes e iluminados com caligrafias douradas. Pareciam gastos de um jeito que deixava
claro que não eram apenas velhos, mas bastante utilizados, amados.
O chão era de madeira polida, incrustada com pedaços de vidro, mármore e pedras
semipreciosas. A camada interior formava um padrão que Clary não conseguia decifrar —poderiam ser as constelações, ou até um mapa do mundo; ela suspeitou que teria de subir a
torre e olhar para baixo para enxergar direito.
No centro da sala, havia uma mesa magnífica. Era esculpida a partir de um único bloco de
madeira, um pedaço grande e pesado de carvalho, luminoso com o brilho dos anos. O bloco se
apoiava nas costas de dois anjos, esculpidos a partir da mesma madeira, as asas entrelaçadas
e as faces entalhadas com olhar sofrido, como se o peso da mesa estivesse quebrando suas
respectivas colunas. Atrás da escrivaninha, sentava um homem magro, com cabelos grisalhos e
um longo nariz pontudo.
— Uma amante de livros, posso perceber — ele disse, sorrindo para Clary. — Você não
tinha me contado isso, Jace.
Jace riu. Clary podia perceber que ele estava atrás dela, com as mãos no bolso, e aquele
sorriso irritante.
— Não conversamos muito durante nosso breve contato — ele disse. — Temo que nossos
hábitos de leitura não tenham sido abordados.
Clary virou-se para ele e lançou-lhe um olhar.
— Como você sabe? — ela perguntou para o homem atrás da mesa. — Que eu gosto de
livros, quero dizer.
— A expressão no seu rosto quando você entrou — ele disse, levantando-se e circulando a
mesa. — Por algum motivo duvidei que tivesse ficado tão impressionada comigo.
Clary conteve uma exclamação de espanto quando ele se levantou. Por um instante parecia
que ele estava estranhamente deformado, o ombro esquerdo era mais alto que o outro. Ao se
aproximar, ela percebeu que a protuberância era na verdade um pássaro, empoleirado no
ombro dele — uma criatura de penas brilhantes com olhos pretos reluzentes.
— Esse é Hugo — disse o homem, tocando o pássaro no ombro. — Hugo é um corvo e,
como tal, sabe muitas coisas. Enquanto eu, Hodge Starkweather, sou um professor de História,
e como tal, não sei quase nada.
Clary deu uma risadinha e apertou a mão esticada de Hodge.
— Clary Fray.
— Honrado em conhecê-la — ele disse. — Ficaria honrado em conhecer qualquer pessoa
capaz de matar um Ravener apenas com as próprias mãos.
— Não foram só as mãos. — Ainda parecia estranho ser exaltada por ter matado alguma
coisa. — Foi aquela coisa do Jace, bem, não me lembro o nome, mas...
— Ela está falando do meu Sensor — disse Jace. — Ela o enfiou na garganta do bicho. Os
símbolos devem tê-lo sufocado. Acho que vou precisar de um novo — ele acrescentou, quase
como se só tivesse pensado nisso agora. — Deveria ter dito isso antes.
— Temos vários outros na sala das armas — disse Hodge. Quando ele sorriu para Clary,
milhares de pequenas linhas saíam de seus olhos, como rachaduras em um quadro antigo. —Você pensou rápido. Como teve a ideia de usar o Sensor como uma arma?
Antes que ela pudesse responder, uma risada aguda ecoou pela sala. Clary estivera tão
enfeitiçada pelos livros e distraída por Hodge que não havia notado Alec espalhado em uma
poltrona vermelha ao lado da lareira vazia.
— Não acredito que você vá cair nessa história, Hodge — ele disse.
Inicialmente, Clary nem sequer registrou as palavras dele. Estava ocupada demais o
encarando. Como muitos filhos únicos, ela ficara fascinada pela semelhança entre irmãos, e
agora sob a clara luz do dia, podia notar o quão parecido com a irmã Alec era. Eles tinham o
mesmo cabelo preto, as mesmas sobrancelhas finas curvadas nos cantos, a mesma pele pálida.
Mas, enquanto Isabelle era pura arrogância, Alec se acomodava na cadeira, como se
esperasse não ser notado por ninguém. Tinha cílios longos e escuros como os da irmã, mas
Isabelle tinha olhos negros e ele tinha olhos azul-escuros, como uma garrafa de vidro.
Encaravam Clary com uma hostilidade tão pura e concentrada quanto ácido.
— Não estou entendendo muito bem o que você quer dizer, Alec — Hodge ergueu uma
sobrancelha. Clary ficou imaginando qual seria a idade dele; havia algo angelical a seu
respeito, apesar da cor grisalha dos cabelos. Ele trajava um terno cinza impecável,
perfeitamente passado. Ele poderia se passar por um professor universitário gentil se não
fosse pela cicatriz grossa que marcava o lado direito do rosto. Ela ficou imaginando onde ele
teria arrumado aquela marca.
— Você está sugerindo que ela não matou aquele demônio?
— É claro que não matou. Olhe para ela: ela é mundana, Hodge. Além disso, não passa de
uma criança. É claro que ela não matou o Ravener.
— Eu não sou uma criança — interrompeu Clary. — Eu tenho 16 anos, bem, vou fazer 16
no domingo.
— A mesma idade de Isabelle — disse Hodge. — Você diria que ela é uma criança?
— Isabelle faz parte de uma das maiores dinastias de Caçadores de Sombras da História
— disse Alec secamente. — E essa menina vem de Nova Jersey.
— Eu sou do Brooklyn! — Clary estava enfurecida. — E daí? Acabei de matar um
demônio na minha própria casa, e você vai ficar se comportando como um babaca porque não
sou uma riquinha mimada feito você e a sua irmã?
Alec espantou-se.
— Do que você me chamou?
Jace riu.
— Ela tem razão, Alec — disse Jace. — São esses demônios de ponte e túnel que você
realmente tem que observar...
— Não tem graça, Jace — interrompeu Alec, olhando os próprios pés. — Você vai ficar aí parado, simplesmente, permitindo que ela me ofenda?
— Vou — disse Jace calmamente. — Vai fazer bem a você, pense nisso como um
treinamento de resistência.
— Podemos ser parabatai — Alec disse severamente. — Mas a sua impertinência está
esgotando a minha paciência.
— E a sua pertinácia está esgotando a minha. Quando a encontrei, ela estava caída no
chão, em uma poça de sangue e um demônio moribundo praticamente em cima dela. Eu vi
quando ele se dissolveu. Se ela não o matou, quem foi?
— Raveners são burros. Talvez ele tenha picado o próprio pescoço com o ferrão. Já
aconteceu antes...
— Agora você está sugerindo que o demônio se suicidou?
A boca de Alec enrijeceu.
— Não é certo que ela esteja aqui. Mundanos não são permitidos no Instituto, e existem
boas razões para isso. Se alguém soubesse disso, poderíamos ser reportados à Clave.
— Isso não é totalmente verdade — disse Hodge. — A Lei permite que ofereçamos
santuário a alguns mundanos em certas circunstâncias. Um Ravener já tinha atacado a mãe de
Clary, e ela poderia ser a próxima.
Atacou. Clary imaginou se isso seria um eufemismo para “assassinou”. O corvo no ombro
de Hodge se mexeu suavemente.
— Raveners são máquinas de busca e destruição — disse Alec. — Eles agem por ordem
de feiticeiros ou poderosos lordes demoníacos. Agora, que interesse um feiticeiro ou um lorde
demoníaco teria em uma casa mundana ordinária? — Os olhos dele brilhavam com desgosto
ao olhar para Clary. — Alguma ideia?
Clary disse:
— Deve ter sido algum engano.
— Demônios não cometem esse tipo de engano. Se eles foram atrás da sua mãe, devem ter
tido algum motivo para isso. Se ela fosse inocente...
— O que você quer dizer com “inocente”? — A voz de Clary soava tranquila.
Alec parecia espantado.
— Eu...
— O que ele quer dizer — disse Hodge — é que é extremamente incomum que um
demônio poderoso, do tipo que controla um exército de demônios menores, fosse interessar-se
por seres humanos. Nenhum mundano consegue invocar um demônio, eles não têm esse poder,
mas existem alguns, tolos e desesperados, que encontraram feiticeiros ou bruxas que o
fizessem para eles.
— Minha mãe não conhece nenhum bruxo. Ela não acredita em mágica. — Um pensamento
ocorreu a Clary. — Madame Dorothea, que mora no andar debaixo, é uma bruxa. Talvez os demônios estivessem atrás dela e tenham pego minha mãe por engano...
As sobrancelhas de Hodge se ergueram subitamente.
— Uma bruxa mora no andar abaixo do seu?
— Ela é charlatã, falsa — disse Jace. — Eu já averiguei. Não há qualquer razão para um
feiticeiro se interessar por ela, a não ser que esteja procurando bolas de cristal que não
funcionem.
— E voltamos ao início. — Hodge alcançou o pássaro e o acariciou. — Acho que chegou
o momento de avisar à Clave.
— Não! — disse Jace. — Não podemos...
— Fazia sentido manter a presença de Clary em segredo enquanto não sabíamos se ela iria
se recuperar — disse Hodge. — Mas agora ela está melhor, e é a primeira mundana a
atravessar as portas do Instituto em mais de cem anos. Você conhece as regras acerca do
conhecimento de humanos sobre Caçadores de Sombras, Jace. A Clave deve ser informada.
— Exatamente — concordou Alec. — Eu poderia enviar uma mensagem ao meu pai...
— Ela não é mundana — disse Jace tranquilamente.
As sobrancelhas de Hodge saltaram novamente, e permaneceram levantadas. Alec,
interrompido no meio de uma frase, engasgou com a surpresa. No silêncio repentino, Clary
podia ouvir o som das asas de Hugo se agitando.
— Claro que sou — ela disse.
— Não — disse Jace. — Você não é. — Ele virou-se para Hodge, e Clary viu o leve
movimento em sua garganta enquanto ele engolia em seco. Ela achou esse leve nervosismo em
Jace estranhamente confortante. — Naquela noite havia demônios Du’sien, vestidos como
policiais. Tivemos de passar por eles. Clary estava fraca demais para correr, e não tínhamos
tempo para nos esconder, ela teria morrido. Então eu usei a minha estela, coloquei um símbolo
mendelin no interior do braço dela. Eu achei que...
— Você está louco? — Hodge bateu com a mão no topo da escrivaninha com tanta força
que Clary achou que a madeira fosse quebrar. — Você sabe o que a Lei diz sobre colocar
Marcas em mundanos! Você, você, mais do que ninguém deveria saber!
— Mas deu certo — disse Jace. — Clary, mostre a eles o seu braço.
Com um olhar espantado na direção de Jace, ela esticou o braço. Ela se lembrou de ter
olhado para ele naquela noite no beco, pensando no quão vulnerável parecia. Agora, logo
abaixo da camada epitelial do pulso, ela podia ver três círculos sobrepostos desbotados, as
linhas tão fracas quanto a lembrança de uma cicatriz que havia desbotado com o passar dos
anos.
— Viu só, já está quase desaparecida — disse Jace. — E não a machucou nem um pouco.
— A questão não é essa. — Hodge mal podia controlar a própria raiva. — Você podia tê la transformado em uma Renegada.
Dois pontos brilhantes de cor iluminaram as maçãs do rosto de Alec.
— Eu não acredito, Jace. Só Caçadores de Sombras podem receber Marcas de Pacto, elas
matam mundanos...
— Ela não é mundana. Você não ouviu nada do que eu disse? Isso explica por que ela
podia nos ver. Ela deve ter sangue de Clave.
Clary abaixou o braço, sentindo frio de repente.
— Mas não tenho. Não tem como.
— Você deve ter — disse Jace sem olhar para ela. — Se não tivesse, a Marca que eu fiz
no seu braço...
— Basta, Jace — disse Hodge, o desagrado era claro em sua voz. — Não há motivo algum
para assustá-la ainda mais.
— Mas eu estava certo, não estava? E também explica o que aconteceu à mãe dela. Se ela
fosse uma Caçadora de Sombras em exílio, podia muito bem ter inimigos no Submundo.
— Minha mãe não era uma Caçadora de Sombras!
— Seu pai, então — disse Jace. — Que tal ele?
Clary revirou os olhos com uma expressão vazia.
— Ele morreu. Antes de eu nascer.
Jace se contraiu, quase imperceptivelmente. Foi Alec quem falou.
— É possível — disse, incerto. — Se o pai dela fosse um Caçador de Sombras e a mãe,
uma mundana... bem, todos nós sabemos que é contra a Lei casar-se com um mundano. Talvez
estivessem se escondendo.
— Minha mãe teria me contado — disse Clary, apesar de ter lembrado da única foto do
pai, e na maneira como a mãe nunca falava a seu respeito, e sabido imediatamente que o que
acabara de dizer não era verdade.
— Não necessariamente — disse Jace. — Todos nós temos segredos.
— Luke — Clary disse. — Nosso amigo. Ele saberia. — Com a imagem de Luke, veio um
flash de culpa e horror. — Já faz três dias, ele deve estar desesperado. Posso ligar para ele?
Tem algum telefone aqui? — Ela se virou para Jace. — Por favor?
Jace hesitou, olhando para Hodge, que anuiu com a cabeça e se afastou da mesa. Atrás
dele, havia um globo, feito de metal, que não parecia em nada com os outros globos que ela já
tinha visto; havia alguma estranheza sutil no formato dos países e dos continentes. Ao lado do
globo, havia um telefone preto antiquado com um giro de discagem prateado. Clary o levantou
para a orelha, o tom de discagem familiar a reconfortou.
Luke atendeu no terceiro toque.
— Alô?
— Luke! — Ela se apoiou na mesa. — Sou eu, Clary. — Clary. — Ela percebeu o alívio na voz dele, junto com mais alguma coisa que não
conseguia identificar. — Você está bem?
— Estou — ela disse. — Desculpe por não ter ligado antes. Luke, minha mãe...
— Eu sei. A polícia esteve aqui.
— Então você não teve notícias dela. — Qualquer esperança de que a mãe tivesse
escapado e se escondido em algum lugar desapareceu. Ela nunca teria deixado de entrar em
contato com Luke. — O que a polícia disse?
— Apenas que ela estava desaparecida. — Clary pensou na policial com a mão
esquelética e estremeceu. — Onde você está?
— Estou na cidade — disse Clary. — Não sei exatamente onde. Com alguns amigos. Mas
minha carteira desapareceu. Se você tiver dinheiro, eu posso pegar um táxi até a sua casa...
— Não — ele disse rapidamente.
O telefone escorregou na mão suada de Clary.
— O quê?
— Não — ele disse. — É perigoso demais, você não pode vir aqui.
— Poderíamos ligar para...
— Preste atenção. — A voz dele era severa. — Seja lá com que for que sua mãe tenha se
metido, não tem nada a ver comigo. É melhor você ficar onde está.
— Mas eu não quero ficar aqui. — Ela podia ouvir a própria voz resmungando, como a de
uma criança. — Não gosto dessas pessoas. Você...
— Eu não sou o seu pai, Clary. Já te disse isso.
Ela sentiu lágrimas queimando no fundo dos olhos.
— Desculpe, é que...
— Não me telefone mais para pedir favores — ele disse. — Tenho meus próprios
problemas, não preciso ser incomodado com os seus — ele acrescentou e desligou o telefone.
Ela ficou parada olhando para o aparelho, o ruído buzinando no ouvido como uma vespa
gigantesca. Ela discou novamente o número de Luke e esperou. Dessa vez a secretária
eletrônica atendeu. Ela bateu o telefone, com as mãos tremendo.
Jace estava apoiado no braço da cadeira de Alec, observando Clary.
— Acho que ele não ficou feliz por receber notícias suas!
Parecia que o coração de Clary se encolhera ao tamanho de uma noz: uma pedrinha
pequena e dura no peito. Não vou chorar, ela pensou. Não na frente dessas pessoas.
— Acho que gostaria de ter uma conversa com Clary — disse Hodge. — Em particular —
acrescentou com firmeza ao ver a expressão de Jace. Alec se levantou.
— Tudo bem. Vamos deixá-los a sós.
— Isso não é justo — protestou Jace. — Fui eu que a encontrei. Fui eu que salvei a vida
dela! Você quer que eu fique aqui, não quer? — ele apelou, voltando-se para Clary.
Clary desviou o olhar, sabendo que se abrisse a boca começaria a chorar. Como se
estivesse distante, ela ouviu a risada de Alec.
— Nem todo mundo quer você por perto o tempo todo, Jace — ele disse.
— Não seja ridículo. — Ela ouviu Jace dizer, mas ele parecia decepcionado. — Então
tudo bem. Estaremos na sala das armas, à sua espera.
A porta fechou atrás dele com um clique definitivo. Os olhos de Clary estavam ardendo,
do jeito que ficavam toda vez que ela tentava conter lágrimas por muito tempo. Hodge estava
na frente dela, um borrão cinza difuso.
— Sente-se — ele disse. — Aqui, no sofá.
Ela afundou agradecida nas almofadas macias, piscando os olhos.
— Eu não costumo chorar muito — ela se viu dizendo. — Não é nada. Daqui a pouco vou
estar bem.
— A maioria das pessoas não chora quando está chateada ou assustada, mas quando está
frustrada. Sua frustração é compreensível. Você está passando por uma fase e tanto.
— Fase? — Clary limpou as lágrimas na blusa de Isabelle. — Acho que poderia dizer
isso.
Hodge puxou a cadeira de trás da mesa, arrastando-a para que pudesse se sentar de frente
para Clary. Os olhos dele, ela viu, tinham uma cor acinzentada, assim como o cabelo e o
paletó, mas havia também gentileza em sua expressão.
— Tem alguma coisa que eu possa pegar para você? — ele perguntou. — Alguma coisa
para beber? Um chá?
— Não quero chá — disse Clary, quase sem força. — Quero encontrar a minha mãe.
Depois quero descobrir quem foi que a levou, e quero matar quem fez isso.
— Infelizmente — disse Hodge —, estamos sem vingança amarga no momento. Então é
chá ou nada.
Clary soltou a base da blusa — agora marcada por pedaços molhados — e disse:
— Então o que devo fazer?
— Você poderia começar me contando um pouco a respeito do que aconteceu — disse
Hodge, remexendo no bolso. Ele pegou um lenço imaculadamente dobrado, e o entregou a ela.
Ela aceitou com um espanto silencioso. Ela nunca havia conhecido alguém que carregasse um
lenço. — O demônio que você viu no apartamento, aquela foi a primeira criatura desse tipo
que você já viu? Você não fazia a menor ideia de que existiam criaturas daquela espécie?  Clary balançou a cabeça, depois fez uma pausa.
— Um, antes, mas eu não percebi o que era. Na primeira vez que vi Jace...
— Certo, claro, que tolice a minha esquecer. — Hodge fez que sim com a cabeça. — No
Pandemônio. Foi a primeira vez?
— Foi.
— E sua mãe nunca os mencionou para você, nada a respeito de algum outro mundo,
talvez, que a maioria das pessoas não consegue ver? Ela parecia particularmente interessada
em mitos, contos de fada, lendas do fantástico...
— Não. Ela detestava todas essas coisas. Ela detestava até mesmo os filmes da Disney.
Não gostava que eu lesse mangá. Ela dizia que era muito infantil.
Hodge coçou a cabeça. O cabelo dele não se mexeu.
— Muito peculiar — ele disse.
— Na verdade, não — disse Clary. — Minha mãe não era peculiar. Ela era a pessoa mais
normal do mundo.
— Pessoas normais não costumam encontrar suas casas saqueadas por demônios — disse
Hodge, sem qualquer gentileza.
— Não pode ter sido um engano?
— Se tivesse sido um engano — disse Hodge — e você fosse uma garota normal, não teria
visto o demônio que a atacou, ou, se tivesse visto, sua mente teria processado como alguma
coisa completamente diferente: um cão raivoso, até mesmo outro ser humano. O fato de que
você conseguia vê-lo, e ele ter falado com você...
— Como você sabe que ele falou comigo?
— Jace disse que você contou que “ele falava”.
— Ele sibilava. — Clary estremeceu ao se lembrar. — Falava sobre querer me comer,
mas que não deveria fazê-lo.
— Raveners geralmente ficam sob o controle de algum demônio mais poderoso. Eles não
são muito inteligentes ou capazes por si só — explicou Hodge. — Ele disse o que o mestre
dele estava procurando?
Clary se concentrou.
— Ele falou alguma coisa sobre um Valentim, mas...
Hodge se esticou subitamente, de forma tão abrupta, que Hugo, que estava descansando
confortavelmente no ombro dele, se lançou ao ar, irritadiço.
— Valentim?
— Isso — disse Clary. — Eu ouvi o mesmo nome no Pandemônio, dito pelo menino, quero
dizer, o demônio...
— É um nome que todos nós conhecemos — disse Hodge brevemente. Ele tinha a voz   firme, mas ela podia ver que apresentava um leve tremor nas mãos. Hugo, de volta ao seu
ombro, balançou as penas desconfortavelmente.
— Um demônio?
— Não. Valentim é, era, um Caçador de Sombras.
— Um Caçador de Sombras? Por que você disse era?
— Porque ele está morto — disse Hodge secamente. — Morreu há 16 anos.
Clary se afundou novamente nas almofadas do sofá. Sua cabeça estava latejando. Talvez
ela devesse ter aceitado o chá.
— Será que poderia ser outra pessoa? Alguém com o mesmo nome?
A risada de Hodge foi um ruído sem qualquer sinal de humor.
— Não. Mas poderia ser alguém usando o nome dele para transmitir algum recado. — Ele
se levantou e caminhou até a mesa, com as mãos nas costas. — E essa seria a época propícia
para isso.
— Por que agora?
— Por causa dos Acordos.
— As negociações de paz? Jace as mencionou. Paz com quem?
— Com os habitantes do Submundo — murmurou Hodge. Ele olhou para Clary. A boca
dele estava enrijecida. — Perdão — ele disse. — Isso deve ser muito confuso para você.
— Você acha?
Ele se apoiou na mesa, acariciando as penas de Hugo, distraído.
— Os habitantes do Submundo são aqueles que compartilham o Mundo de Sombras
conosco. Sempre coexistimos de forma complicada.
— Como vampiros, lobisomens e...
— Os Fair Folk — disse Hodge. — Fadas. E os filhos de Lilith, como semidemônios, são
feiticeiros.
— Então o que são vocês, Caçadores de Sombras?
— Às vezes somos chamados de Nephilim — disse Hodge. — Na Bíblia eles eram filhos
de humanos e anjos. A lenda da origem dos Caçadores de Sombras diz que foram criados há
mais de mil anos, quando os humanos estavam sendo dominados por invasões de demônios de
outros mundos. Um feiticeiro invocou o Anjo Raziel, que misturou um pouco do próprio
sangue com o de alguns homens e o deu para que estes o bebessem. Aqueles que beberam o
sangue do Anjo se tornaram Caçadores de Sombras, assim como seus filhos e os filhos de seus
filhos. O cálice passou a ser conhecido como Cálice Mortal. Embora, talvez, não passe de
uma lenda, a verdade é que, ao longo dos anos, quando os exércitos de Caçadores de Sombras
foram reduzidos, sempre era possível criar novos Caçadores de Sombras através do Cálice.
— Sempre era possível?
— O Cálice não existe mais — disse Hodge. — Foi destruído por Valentim,
imediatamente antes de morrer. Ele acendeu uma fogueira enorme e se queimou junto com sua
família, a esposa e o filho. A terra ficou preta. Ninguém nunca mais construiu nela. Dizem que
a terra é amaldiçoada.
— E é?
— Possivelmente. A Clave lança maldições como punição pela violação da Lei. Valentim
quebrou a maior de todas as Leis: voltou-se contra os companheiros Caçadores de Sombras e
os matou violentamente. Ele e o grupo que integrava, o Ciclo, mataram dúzias de seus irmãos,
junto com centenas de habitantes do Submundo durante o último Acordo. Mas foram
derrotados.
— Por que ele trairia outros Caçadores de Sombras?
— Ele reprovava os Acordos. Abominava os integrantes do Submundo e achava que
tinham de ser esquartejados, vandalizados, para que esse mundo fosse mantido puro para os
seres humanos. Apesar de os habitantes do Submundo não serem demônios, tampouco
invasores, ele achava que tinham natureza demoníaca, e isso bastava. A Clave não
concordava; achava que a assistência dos habitantes do Submundo era necessária se algum dia
quiséssemos livrar o mundo dos demônios de uma vez por todas. E quem poderia discutir, de
verdade, que os Fair Folks não pertenciam a este mundo, quando estavam aqui há mais tempo
do que nós?
— Os Acordos foram assinados?
— Sim, foram assinados. Quando os habitantes do Submundo viram que a Clave se voltou
contra Valentim e o Ciclo em defesa deles, perceberam que os Caçadores de Sombras não
eram inimigos. Ironicamente, com essa insurreição, Valentim possibilitou os Acordos. —
Hodge sentou novamente na cadeira. — Peço desculpas, isso deve ser uma aula monótona de
História para você. Esse era Valentim. Incandescente, um visionário, um homem de grande
charme e convicção. E um assassino. Agora alguém está invocando seu nome...
— Mas quem? — perguntou Clary. — E o que a minha mãe tem a ver com isso?
Hodge se levantou novamente.
— Não sei. Mas vou fazer o possível para descobrir. Vou mandar mensagens para a Clave
e também para os Irmãos do Silêncio. Eles podem querer falar com você.
Clary não perguntou quem eram os Irmãos do Silêncio. Ela estava cansada de fazer
perguntas cujas respostas só faziam com que se sentisse mais confusa. Ela se levantou.
— Existe alguma chance de que eu possa ir para casa?
Hodge pareceu preocupar-se.
— Não, acho que não seria sábio de sua parte.
— Tem coisas que preciso lá, mesmo que eu vá ficar aqui. Roupas...
— Nós podemos lhe dar dinheiro para comprar roupas novas. — Por favor — disse Clary. — Eu tenho que ver se... eu preciso ver o que restou.
Hodge hesitou, depois acenou brevemente com a cabeça em afirmação.
— Se Jace concordar, vocês dois podem ir. — Ele virou-se para a mesa, remexendo
alguns papéis. Olhou por cima do ombro, como se tivesse acabado de reparar que ela ainda
estava ali. — Ele está na sala das armas.
— Eu não sei onde fica isso.
Hodge deu um sorriso torto.
— Church te leva até lá.
Ela olhou em direção à porta, onde o gato persa gordo e azul estava enrolado como um
pequeno otomano. Ele se levantou enquanto ela se aproximava, seus pelos pareciam líquidos.
Com um miado imperioso, ele a conduziu pelo corredor. Quando ela olhou para trás por sobre
o ombro, viu que Hodge já estava fazendo anotações em um pedaço de papel. Enviando uma
mensagem para a Clave misteriosa, ela supôs. Eles não pareciam pessoas muito gentis. Ela
imaginou qual seria a resposta deles.
A tinta vermelha parece sangue contra o papel branco. Franzindo o rosto, Hodge Starkweather
enrolou a carta, cuidadosa e meticulosamente na forma de um tubo, e assobiou para Hugo. O
pássaro, grasnando suavemente, pousou no pulso de Hodge. Ele fez uma careta. Há anos,
durante a Ascensão, ele sofreu um ferimento naquele ombro, e por mais leve que fosse Hugo
— ou a virada das estações, uma mudança de temperatura ou umidade, um movimento súbito
de braço — despertava antigas feridas e lembranças de uma dor que deveria manter-se
esquecida.
Contudo, havia algumas lembranças que nunca se apagavam. Imagens explodiam como
flashes por trás de suas pálpebras quando ele fechava os olhos. Sangue e corpos, terra pesada,
um pódio branco manchado de vermelho. O choro dos moribundos. O verde e os campos de
Idris e o infinito céu azul, espetados pelas torres da Cidade de Vidro. A dor da perda inflava
nele como uma onda; ele cerrou o punho, e Hugo, com as asas batendo, bicou os dedos de
Hodge com força, tirando sangue. Abrindo a mão, ele soltou a ave, que circulou sua cabeça
enquanto subia pelo céu noturno e desaparecia.
Sacudindo-se para espantar a sensação de que alguma coisa terrível estava prestes a
acontecer, Hodge alcançou outro pedaço de papel, sem notar as gotas de sangue que marcavam
o papel enquanto ele escrevia.

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