9 O Ciclo e a Irmandade

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Clary deu um passo à frente para tocar o braço de Jace, dizer alguma coisa, qualquer coisa —
o que se dizia para alguém que havia acabado de ver os assassinos do próprio pai? A
hesitação de Clary revelou não ter importância alguma; Jace mexeu o ombro de modo a
espantar seu toque, como se o machucasse.
— Devemos ir — ele disse, saindo do escritório e entrando na sala. Clary e Simon se
apressaram atrás dele. — Não sabemos quando Luke voltará.
Eles saíram pela porta dos fundos, Jace utilizou a estela para trancar tudo direto para a rua
silenciosa. A lua pendurava-se como um amuleto sobre a cidade, emitindo reflexos perolados
na água do rio. O ronco distante de carros passando pela Williamsburg Bridge preenchia o ar
úmido com um ruído que se assemelhava a asas batendo. Simon disse:
— Alguém quer me dizer para onde estamos indo?
— Para a linha L do metrô — disse Jace calmamente.
— Você só pode estar brincando — disse Simon, piscando os olhos. — Matadores de
demônio andam de metrô?
— É mais rápido que ir de carro.
— Achei que fosse alguma coisa mais legal, como uma van com a frase “Morte aos
Demônios” pintada do lado de fora, ou...
Jace nem se incomodou em fazer com que ele parasse. Clary olhou de soslaio para Jace.
Às vezes, quando Jocelyn estava muito irritada com alguma coisa, ou simplesmente de mau
humor, ficava de um jeito que Clary chamava de “assustadoramente calma”. Era uma calma
que fazia Clary pensar em como o gelo brilhava antes de quebrar com o peso da pessoa. Jace
estava assustadoramente calmo. Com o rosto sem qualquer expressão, embora algo estivesse
queimando no fundo daqueles olhos dourados.
— Simon — disse ela. — Chega.
Simon a olhou de um jeito como se dissesse de que lado você está?, mas Clary o ignorou.
Ela continuava observando Jace enquanto viravam na Kent Avenue. As luzes da ponte atrás
deles iluminavam os cabelos de Jace, criando um resplendor improvável. Ela imaginou se era
errado o fato de ela estar satisfeita pelos homens que levaram sua mãe serem os mesmos que mataram o pai de Jace anos antes. Pelo menos por enquanto, ele teria de ajudá-la a encontrar
Jocelyn, querendo ou não. Pelo menos por enquanto, não poderia deixá-la sozinha.
— Você mora aqui? — Simon estava olhando para o alto da catedral com as janelas
quebradas e as portas seladas com fita amarela de polícia. — Mas é uma igreja.
Jace pôs a mão por dentro do colarinho da camisa e puxou uma chave de bronze pendurada
em um chaveiro. Parecia o tipo de chave que alguém usaria para abrir um baú velho em um
sótão. Clary assistiu à cena, curiosa — ele não havia trancado a porta quando saíram do
Instituto; apenas a fechou.
— Achamos útil habitar um solo oco.
— Tudo bem, entendo, mas, sem querer ofender, este lugar é um lixo — disse Simon,
olhando dubiamente para a grade de ferro curvada que cercava a antiga construção, cheia de
lixo empilhado nas escadas.
Clary deixou a mente relaxar. Ela se imaginou pegando um dos trapos de terebintina da
mãe e passando na vista à frente dela, limpando o feitiço, como se fosse tinta velha.
Lá estava: a verdadeira visão, brilhando através da falsa como luz através de um vidro
escuro. Ela viu as espirais da catedral, o fulgor das janelas de chumbo, a placa de bronze
fixada na parede de pedra ao lado da porta, com o nome do Instituto gravado. Conteve a visão
por um instante antes de deixá-la sumir, quase com um suspiro.
— Tem muita magia, Simon — ela disse. — Não é realmente assim.
— Se essa é a sua ideia de magia, acho que vou repensar se vou deixar você ser a
responsável pela minha mudança de visual.
Jace encaixou a chave na tranca, olhando para Simon por cima do ombro.
— Não sei se você tem noção da dimensão da honra que estou concedendo a você — ele
disse. — Você será o primeiro mundano a ter entrado no Instituto um dia.
— Deve ser o cheiro que mantém os outros afastados.
— Ignore — Clary disse a Jace, e deu uma cotovelada em Simon. — Ele sempre diz
exatamente o que vem à cabeça. Não tem filtro.
— Filtros são para cigarro e café — resmungou Simon enquanto entravam. — Duas
coisas, por sinal, que cairiam muito bem agora.
Clary pensou desejosa em café enquanto subiam escadas em espiral, cada uma entalhada
com um glifo. Estava começando a reconhecer alguns — atormentavam sua visão como
palavras semiescutadas em uma língua estrangeira atormentavam sua audição, como se
simplesmente se concentrando um pouco mais fosse possível extrair algum significado.
Clary e os dois meninos chegaram ao elevador e subiram em silêncio. Ela ainda estava
pensando no café, grandes canecas de café, cujo conteúdo era metade leite, do jeito que Jocelyn fazia pela manhã. Às vezes Luke trazia saquinhos de rolinhos doces da confeitaria
Golden Carriage em Chinatown. Ao pensar em Luke, o estômago de Clary se encolheu e ela
perdeu o apetite.
O elevador parou com estrépito, e eles estavam novamente na entrada de que Clary
lembrava. Jace tirou a jaqueta, jogou-a em cima de uma cadeira próxima e assobiou através
dos dentes. Em alguns segundos, apareceu Church, abaixando-se, os olhos amarelos brilhando
no ar empoeirado.
— Church — disse Jace, ajoelhando-se para acariciar a cabeça cinza do gato. — Onde
está Alec, Church? Cadê o Hodge?
Church arqueou a coluna e miou. Jace franziu o nariz, coisa que Clary poderia ter achado
bonitinho em outras circunstâncias.
— Eles estão na biblioteca? — Ele se levantou e Church se sacudiu, trotando um
pouquinho pelo corredor, e olhando para trás. Jace seguia o gato como se isso fosse a coisa
mais natural do mundo, indicando com um aceno que Clary e Simon deveriam acompanhá-lo.
— Não gosto de gatos — disse Simon, com o ombro batendo no de Clary enquanto
manobravam pelo corredor estreito.
— Conhecendo Church — disse Jace —, é improvável que ele goste de você.
Eles estavam passando por um dos corredores alinhados com os quartos. As sobrancelhas
de Simon se ergueram.
— Quantas pessoas moram aqui, exatamente?
— É um instituto — disse Clary. — Um lugar no qual os Caçadores de Sombras podem
ficar quando estão na cidade. É uma espécie de combinação entre refúgio seguro e instalação
de pesquisa.
— Pensei que fosse uma igreja.
— Fica dentro de uma igreja.
— E isso não é confuso. — Ela podia perceber o nervosismo sob o tom agitado de Simon.
Em vez de brigar com ele, Clary esticou a mão e pegou a dele, entrelaçando os dedos nos
dedos frios do amigo. Sua mão estava fria, mas ele retribuiu a pressão com um aperto
agradecido.
— Eu sei que é estranho — ela disse calmamente —, mas você tem que embarcar na onda.
Pode confiar em mim.
Os olhos escuros de Simon estavam sérios.
— Eu confio em você — ele disse. — Não confio nele. — Ele olhou na direção de Jace,
que estava andando alguns passos à frente deles, aparentemente conversando com o gato.
Clary imaginou sobre o que estariam falando. Política? Ópera? O preço alto do atum?
— Bem, você precisa tentar — ela disse. — Agora ele é a melhor chance que tenho de encontrar minha mãe.
Um arrepio passou por Simon.
— Este lugar não parece certo — ele sussurrou.
Clary se lembrou de como se sentira ao acordar ali pela manhã — como se tudo fosse
estranho e familiar ao mesmo tempo. Para Simon, claramente, não havia qualquer
familiaridade; só a sensação de estranheza, diferença e hostilidade.
— Você não precisa ficar comigo — ela disse, embora tivesse brigado com Jace no metrô
pelo direito de manter Simon com ela, ressaltando que, após três dias vigiando Luke, ele
poderia muito bem saber alguma coisa que lhes fosse útil quando tivessem a chance de
examinar tudo nos mínimos detalhes.
— Preciso — disse Simon —, preciso sim. — E ele soltou a mão dela ao entrarem por
uma porta e se encontrarem em uma cozinha. Era uma cozinha enorme e, ao contrário do resto
do Instituto, inteiramente moderna, com bancadas metálicas e prateleiras de vidro que
sustentavam fileiras de louças. Ao lado de um fogão vermelho de ferro fundido, estava
Isabelle, com uma colher redonda na mão, os cabelos escuros presos em um coque. Vapor saía
da panela, e os ingredientes estavam espalhados por todo lugar — tomates, alho e cebola
picados, pedaços de ervas escuras, queijo ralado, cascas de amendoins, um punhado de
azeitonas e um peixe inteiro, olhando para cima.
— Estou fazendo sopa — disse Isabelle, balançando a colher para Jace. — Você está com
fome? — Então ela olhou atrás dele, vendo Clary e Simon. — Meu Deus — disse em caráter
definitivo. — Você trouxe outro mundano? Hodge vai matar você.
Simon limpou a garganta.
— Eu sou Simon — ele disse.
Isabelle o ignorou.
— JACE WAYLAND — ela disse. — Explique-se.
Jace estava olhando para o gato.
— Eu disse para me levar até Alec! Seu traidor.
Church rolou sobre as costas, ronronando satisfeito.
— Não culpe Church — disse Isabelle. — Não é culpa dele se Hodge vai matá-lo. — Ela
colocou a colher de volta na panela. Clary imaginou que gosto teria uma sopa de amendoim,
peixe, azeitona e tomate.
— Eu tive que trazê-lo — disse Jace. — Isabelle... hoje eu vi os dois homens que mataram
meu pai.
Os ombros de Isabelle enrijeceram, mas, quando ela virou para eles, parecia mais
chateada do que surpresa.
— Suponho que esse aí não seja um deles... — inquiriu, apontando a colher para Simon.
Para a surpresa de Clary, Simon não disse nada em resposta. Ele estava ocupado demais encarando Isabelle, arrebatado e de queixo caído. Obviamente, percebeu Clary com uma
pontada de irritação. Isabelle era exatamente o tipo de Simon — alta, glamourosa e linda.
Pensando bem, talvez esse fosse o tipo de todo mundo. Clary parou de pensar na sopa de
amendoim, peixe, azeitona e tomate e começou a imaginar o que aconteceria se despejasse
todo o conteúdo da panela na cabeça de Isabelle.
— É claro que não — disse Jace. — Você acha que ele estaria vivo agora se fosse?
Isabelle lançou um olhar indiferente a Simon.
— Acho que não — concordou, derrubando um pedaço de peixe no chão com descaso.
Church foi para cima dele avidamente.
— Não foi à toa que ele nos trouxe aqui — disse Jace, enojado. — Não acredito que você
o está enchendo de peixe outra vez. Ele está particularmente rechonchudo.
— Ele não está rechonchudo. Além disso, nenhum de vocês jamais come nada. Peguei essa
receita com um duende aquático no Chelsea Market. Ele disse que era deliciosa...
— Se você soubesse cozinhar, talvez eu comesse — resmungou Jace.
Isabelle congelou, segurando a colher num gesto ameaçador.
— O que foi que você disse?
Jace foi até a geladeira.
— Eu disse que vou procurar algum lanche para comer.
— Foi o que pensei. — Isabelle voltou a atenção para a sopa. Simon continuou olhando
para Isabelle. Clary, inexplicavelmente furiosa, jogou a mochila no chão e seguiu Jace até a
geladeira.
— Não acredito que você está comendo — ela sibilou.
— O que eu deveria estar fazendo? — perguntou com uma calma irritante. O interior da
geladeira estava cheio de caixas de leite cujas datas de validade já haviam expirado há
semanas, e potes de plástico rotulados com fitas nos quais se via escrito com tinta vermelha:
DO HODGE. NÃO COMA.
— Nossa, ele é como um colega de apartamento maluco — observou Clary,
momentaneamente distraída.
— Quem, Hodge? Ele só gosta das coisas organizadas. — Jace tirou um dos potes da
geladeira e abriu. — Hummm. Espaguete.
— Não vá perder o apetite — disse Isabelle.
— Isso — disse Jace, fechando a geladeira com um chute e pegando um garfo de uma
gaveta — é exatamente o que pretendo fazer. — Ele olhou para Clary. — Quer um pouco?
Ela balançou a cabeça.
— É claro que não — disse ele com a boca cheia. — Você comeu todos aqueles
sanduíches.
— Não foram tantos sanduíches assim. — Ela olhou para Simon, que parecia ter tido êxito
em iniciar uma conversa com Isabelle. — Podemos procurar Hodge agora?
— Você parece extremamente ansiosa para sair daqui.
— Você não quer contar a ele o que vimos?
— Ainda não decidi. — Jace colocou o pote na mesa e lambeu o molho de espaguete do
dedo pensativamente. — Mas se você quer tanto ir...
— Quero.
— Tudo bem. — Ele parecia absurdamente calmo, ela pensou, não assustadoramente
calmo como estivera antes, porém mais calmo do que deveria estar. Ela imaginou com que
frequência ele deixava traços de sua verdadeira personalidade passarem pela fachada dura e
brilhante como a camada de laca em uma das caixas chinesas de Jocelyn.
— Aonde vocês estão indo? — Simon levantou o olhar quando eles estavam chegando à
porta. Fios de cabelo escuro caíam sobre seus olhos; ele parecia estupidamente espantado,
Clary pensou maldosamente, como se alguém o tivesse acertado com um bastão na nuca.
— Encontrar Hodge — ela disse. — Eu preciso contar a ele o que aconteceu na casa do
Luke.
Isabelle olhou para eles.
— Você vai contar para ele que viu aqueles homens, Jace? Os que...
— Não sei — ele a interrompeu. — Então guarde para si por enquanto.
Ela deu de ombros.
— Tudo bem. Você vai voltar? Quer um pouco de sopa?
— Não — disse Jace.
— Você acha que Hodge vai querer sopa?
— Ninguém quer sopa.
— Eu quero um pouco de sopa — disse Simon.
— Não, você não quer — disse Jace. — Você só quer transar com a Isabelle.
Simon se espantou.
— Isso não é verdade.
— Que coisa mais lisonjeira — Isabelle resmungou na direção da sopa, sorrindo.
— Ah, é sim — disse Jace. — Vá em frente e pergunte a ela, assim ela pode te dar um fora
e nós podemos seguir em frente enquanto você lida com a própria humilhação. — Ele estalou
os dedos. — Depressa, menino mundano, temos trabalho a fazer.
Simon desviou o olhar, completamente envergonhado. Clary, que há um segundo teria se
sentido maliciosamente vingada, sentiu um ímpeto de raiva de Jace.
— Deixe-o em paz — disparou. — Não há motivo para ser sádico só porque ele não é um
de vocês.
— Um de nós — disse Jace, mas o olhar sarcástico abandonara seu rosto. — Vou procurar
Hodge. Pode vir junto ou não, a escolha é sua. — A porta da cozinha se fechou atrás dele,
deixando Clary sozinha com Isabelle.
Isabelle serviu uma concha de sopa em uma vasilha e a empurrou sobre a bancada para
Simon sem olhar para ele. Mas ela continuava sorrindo, Clary podia sentir. A sopa era verde-
escura, e continha algumas coisas flutuantes de cor marrom.
— Eu vou com Jace — disse Clary. — Simon...?
— Euvoficaqui — resmungou, olhando para baixo.
— O quê?
— Eu vou ficar aqui — Simon sentou-se em um banco. — Estou com fome.
— Tudo bem. — A garganta de Clary estava apertada, como se ela tivesse engolido algo
muito quente ou muito frio. Ela saiu da cozinha, com Church a seus pés, como uma sombra
cinza.
No corredor, Jace estava girando uma das lâminas serafim entre os dedos. Ele a colocou
no bolso ao vê-la.
— Gentileza sua deixar os pombinhos a sós.
Clary franziu o rosto para ele.
— Por que você é sempre tão desagradável?
— Desagradável? — Jace parecia estar a ponto de começar a rir.
— O que você disse para Simon...
— Eu estava tentando poupá-lo. Isabelle vai cortar o coração dele e pisar em cima com
botas de salto alto. É isso que ela faz com garotos como ele.
— Foi isso que ela fez com você? — perguntou Clary, mas Jace apenas balançou a cabeça
antes de se voltar para Church.
— Hodge — ele disse. — E Hodge mesmo dessa vez. Leve-nos a qualquer outro lugar e
eu te transformo em uma raquete de tênis.
O gato persa ronronou e passou pelo corredor na frente deles. Clary, que vinha atrás de
Jace, podia ver o estresse e o cansaço nos ombros dele. Ela imaginou se a tensão o
abandonara em algum momento.
— Jace.
Ele olhou para ela.
— Quê?
— Me desculpe. Por estourar com você.
Ele riu.
— Qual das vezes?
— Você também já estourou comigo, sabia?
— Eu sei — ele disse, para a surpresa dela. — Tem alguma coisa em você que é tão...
— Irritante?
— Inquietante.
Ela queria perguntar se ele estava dizendo isso no bom ou no mau sentido, mas não o fez.
Estava temerosa demais de que ele fizesse da resposta uma piada. Ela ficou procurando outra
coisa para dizer.
— Isabelle sempre prepara o jantar para você? — ela perguntou.
— Não, graças a Deus. Na maior parte do tempo, os Lightwood estão aqui e Maryse, a
mãe de Isabelle, cozinha para nós. Ela é uma ótima cozinheira. — Ele estava contemplativo,
do jeito que Simon ficara quando olhou para Isabelle por cima da sopa.
— Então por que ela nunca ensinou a Isabelle? — Eles estavam passando pela sala de
música agora, onde ela havia encontrado Jace tocando piano pela manhã. Sombras se haviam
formado nos cantos.
— Porque — Jace disse lentamente — apenas recentemente as mulheres passaram a ser
Caçadoras de Sombras ao lado dos homens. Quero dizer, sempre existiram mulheres na Clave,
aprendendo os símbolos, criando armas, ensinando as Artes Mortais, mas poucas guerreiras,
as que tinham habilidades excepcionais. Elas tinham de lutar para ser treinadas. Maryse fez
parte da primeira geração de mulheres da Clave a serem treinadas para a luta, e acho que ela
nunca ensinou Isabelle a cozinhar com medo de que ela fosse se prender à cozinha
permanentemente.
— E isso aconteceria? — Clary perguntou curiosa. Ela pensou em Isabelle no
Pandemônio, na confiança que demonstrava e na segurança com que usou aquele chicote
mortal.
Jace deu uma risada leve.
— Não com Isabelle. Ela é uma das melhores Caçadoras de Sombras que eu já vi.
— Melhor que Alec?
Church, caminhando silenciosamente à frente deles pelas sombras, parou subitamente e
miou. Ele estava agachado ao pé de uma escada metálica em espiral que girava, subindo
através de uma luz fraca acima.
— Então ele está na estufa — disse Jace. Clary levou um instante para perceber que ele
estava falando com o gato. — Não é surpresa alguma.
— Na estufa? — disse Clary.
Jace subiu o primeiro degrau.
— Hodge gosta de ficar lá em cima. Ele cultiva plantas medicinais, coisas que podemos
usar. A maioria só é plantada em Idris. Acho que faz com que ele se lembre de casa.
Clary o seguiu. Seus sapatos faziam barulho nos degraus de metal; os de Jace não.
— Ele é melhor que Isabelle? — ela perguntou novamente. — Alec, quero dizer.
Ele parou e olhou para baixo para ela, inclinando-se, como se estivesse prestes a cair. Ela
se lembrou do sonho que tivera: anjos caindo e queimando.
— Melhor? — ele disse. — Em mutilar demônios? Não, na verdade, não. Ele nunca matou
nenhum.
— Sério?
— Não sei por que não. Talvez porque sempre esteja protegendo a mim e a Izzie. — Eles
chegaram ao topo da escada. Portas duplas os receberam, entalhadas com plantas e vinhas.
Jace as abriu com o ombro.
O cheiro atingiu Clary assim que ela cruzou as portas: um cheiro de vegetação, forte, o
cheiro de coisas vivas e crescentes, de solo e raízes que cresciam em terra. Ela estava
esperando alguma coisa pior, alguma coisa do tamanho da pequena estufa atrás de St. Xavier,
onde os alunos de biologia clonavam ervilhas, ou algo do gênero. Esse era um cercado de
vidro enorme, alinhado com árvores cujos galhos folhosos respiravam ar fresco e de aroma
verde. Havia arbustos cheios de frutas silvestres, vermelhas, roxas e pretas, e pequenas
árvores com frutas estranhas que ela nunca tinha visto.
Clary respirou fundo.
— Tem cheiro de... — primavera, ela pensou, antes de o calor chegar e destruir as
folhas e murchar as pétalas das flores.
— Casa — disse Jace. — Para mim. — Ele empurrou um galho e desviou dele. Clary foi
atrás.
A estufa estava disposta, segundo o olho não treinado de Clary, sem qualquer padrão de
organização, mas para todos os cantos que olhava havia um turbilhão de cores: botões roxo-
azulados caindo de um canto verde, uma vinha cheia de pontos cor de laranja. Elas emergiam
em um espaço claro no qual um banco de granito se encontrava contra o tronco de uma árvore
cheia de folhas verde-prateadas. Água brilhava em uma piscina de pedras. Hodge estava
sentado no banco, com o pássaro preto empoleirado no ombro. Ele estava olhando para baixo
pensativamente, mas levantou os olhos quando eles se aproximaram. Clary seguiu seu olhar e
viu o teto de vidro da estufa iluminado sobre eles como a superfície de um lago invertido.
— Você parece estar esperando por alguma coisa — observou Jace, arrancando uma folha
do ramo e enrolando-a entre os dedos. Para alguém que parecia tão contido, ele tinha muitos
hábitos nervosos. Talvez apenas gostasse de estar em constante movimento.
— Estava perdido em meus pensamentos. — Hodge levantou-se do banco, esticando o
braço para Hugo. O sorriso desapareceu de seu rosto ao olhar para eles. — O que aconteceu?
Vocês estão com cara de que foram...
— Nós fomos atacados — disse Jace secamente. — Renegado.
— Guerreiros Renegados? Aqui?
— Guerreiro — disse Jace. — Só vimos um.
— Mas Dorothea disse que havia mais — acrescentou Clary.
— Dorothea? — Hodge ergueu a mão. — Talvez seja mais fácil se narrarem os eventos
em ordem.
— Muito bem. — Jace lançou um olhar de aviso a Clary, interrompendo-a antes que ela
pudesse começar a falar. Depois embarcou em um recital dos eventos da tarde, deixando de
fora apenas um detalhe: que os homens no apartamento de Luke eram os mesmos que haviam
matado seu pai sete anos antes. — O amigo da mãe de Clary, ou seja lá o que ele for, atende
pelo nome de Luke Garroway — Jace finalmente concluiu. — Mas, enquanto estávamos na
casa dele, os dois homens que se diziam emissários de Valentim se referiram a ele como
Lucian Graymark.
— E os nomes deles eram...
— Pangborn — informou Jace. — E Blackwell.
Hodge ficara completamente pálido. Contra sua pele cinzenta, a cicatriz na face se
destacava como um risco de arame vermelho.
— É como eu temia — ele disse, meio para si mesmo. — O Ciclo está ascendendo
novamente.
Clary olhou para Jace em busca de explicação, mas ele parecia tão confuso quanto ela.
— O Ciclo? — ele perguntou.
Hodge estava sacudindo a cabeça, como se tentasse se livrar de teias de aranha no
cérebro.
— Venham comigo — ele disse. — É hora de mostrar uma coisa.
As lâmpadas de gás estavam acesas na biblioteca, e as superfícies polidas de carvalho dos
móveis pareciam arder como joias escuras. Cobertas por sombras, as faces dos anjos que
seguravam a mesa enorme pareciam ainda mais sofridas. Clary sentou no sofá vermelho, com
as pernas para cima, Jace se apoiou no braço do sofá ao lado dela.
— Hodge, se você precisar de ajuda para procurar...
— De maneira alguma. — Hodge emergiu de trás da mesa, sacudindo a poeira das calças.
— Encontrei.
Ele trazia um livro enorme, encapado com couro marrom. Ele passou as páginas com um
dedo ansioso, piscando como uma coruja por trás dos óculos e sussurrando:
— Onde... onde... ah, aqui está! — Ele limpou a garganta e leu em voz alta: — Por
intermédio deste, afirmo obediência incondicional ao Ciclo e a seus princípios... Estarei
pronto a arriscar minha vida a qualquer instante pelo Ciclo, de modo a preservar a pureza da linhagem de sangue de Idris, e pelo mundo mortal cuja segurança nos é confiada.
Jace fez uma careta.
— De onde foi isso?
— Era o juramento de lealdade do Ciclo de Raziel, há vinte anos — disse Hodge, soando
estranhamente cansado.
— Que coisa arrepiante — disse Clary. — Parece uma organização fascista, ou algo do
tipo.
Hodge repousou o livro. Ele parecia tão sofrido e tão estático quanto os anjos sob a mesa.
— Eram um grupo — disse lentamente — de Caçadores de Sombras, liderados por
Valentim, dedicados a livrar o mundo dos habitantes do Submundo, e devolvê-lo a um estado
“mais puro”. O plano deles era esperar que os membros do Submundo chegassem a Idris para
assinar o Acordo. Aproximadamente a cada 15 anos, eles têm de ser assinados novamente,
para manter sua mágica potente — ele acrescentou, para que Clary pudesse entender. —
Depois, planejavam matar todos eles, desarmados e indefesos. Esse ato terrível, eles
pensaram, traria a guerra entre os humanos e o povo do Submundo, uma guerra que eles
pretendiam vencer.
— Essa foi a Ascensão — disse Jace, finalmente reconhecendo na história de Hodge algo
que lhe era familiar. — Eu não sabia que Valentim e seus seguidores tinham um nome.
— O nome não é dito com frequência nos dias de hoje — disse Hodge. — Sua existência
se mantém como uma vergonha à Clave. A maioria dos documentos ligados a eles foi
destruída.
— Então por que você tem uma cópia desse juramento? — perguntou Jace.
Hodge hesitou apenas por um instante, mas Clary percebeu, e sentiu um pequeno e
inexplicável calafrio de apreensão atravessar a espinha.
— Porque — ele disse, afinal — ajudei a escrevê-lo.
Jace levantou o olhar ao ouvir isso.
— Você fazia parte do Ciclo.
— Fazia. Muitos de nós fazíamos. — Hodge estava olhando diretamente para a frente. —
A mãe de Clary também.
Clary recuou, como se tivesse levado um tapa.
— O quê?
— Eu disse...
— Eu sei o que você disse! Minha mãe jamais teria pertencido a uma coisa dessas. Uma
espécie de... uma espécie de grupo de ódio.
— Não era... — começou Jace, mas Hodge o interrompeu.
— Duvido — ele disse lentamente, como se as palavras doessem — que ela tenha tido  escolha.
Clary o encarou.
— Do que você está falando? Por que ela não teria tido escolha?
— Porque — disse Hodge — ela era mulher de Valentim.

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