Londres, 11 de setembro de 1915
"Querida Anna,
eu te vejo no céu azul, antes que as bombas explodam. Te vejo na grama verde, antes que ela seja banhada por sangue inocente. Te vejo nos sorrisos dos meus colegas de batalhão antes de saírem para o campo de batalha. Te vejo nas estrelas que me fazem companhia nas noites de vigília.
Eu te sinto na brisa que refresca o suor, na água que aquieta minha sede e no canto dos pássaros que ressoa quando os tiros acabam.
Em minha primeira semana aqui, quando presenciei a chacina que se tornava essa guerra, eu temi te perder em meus pensamentos. Temi esquecer seu cheiro, seu gosto e o som de sua voz.
Hoje já não temo mais, porque te sinto comigo a cada instante.
Mas temo perder a mim mesmo, meu amor. A cada corpo derrubado por minha arma, sinto minha alma se esvair um pouco mais. Percebo cada vez menos minha sanidade, minha humanidade e minha compaixão. E me preocupo, pois sei que essas foram as características pelas quais você se apaixonou por mim.
Continuarei lutando, não mais pela Inglaterra, e sim por você, por mim, por nós.
Não me permitirei perder o que te encanta em mim, não me permitirei esquecer o que me encanta em você.
Quando se sentir sozinha, desesperançosa e amargurada, feche seus olhos e ouça minha voz sussurrando juras de amor em nosso quintal. Sinta meu perfume no meu lado da cama. Reveja nossas fotos, releia minhas cartas.
Não me esquecerei de você, peço que não se esqueça de mim também.
Com todo amor e saudade te mando meu coração.
eternamente seu,
Thomas.
França, 9 de setembro 1914"Perdi a conta do número absurdo de vezes que eu li a primeira e única carta que Thomas havia me escrito antes de ser morto em batalha. Ela nem havia sido enviada, ele não teve tempo. Dois dias depois de escrevê-la, morreu em uma maca em campo aberto.
Hoje completava um ano de sua morte, mas a dor excruciante não parecia perto de ir embora.
Quando meu peito apertava a cada respiração e parecia impossível seguir em frente, eu tentava seguir seus passos para acabar com a saudade.
Mas minha mente parecia me pregar peças ao se recusar a lembrar de sua voz, nossa cama já não tinha mais seu cheiro amadeirado e as fotos não passavam de um borrão preto devido às lágrimas não derramadas.
O que me restava era essa carta, que chegou até mim junto de seus pertences. Era um pedaço de papel que esteve mais próximo de meu marido antes de sua morte, que foi capaz de consolá-lo quando eu não pude.
Uma coisa sobre o exército inglês (e muito provavelmente qualquer outro exército pelo mundo) era que quando atraía jovens inexperientes ao fronte, ele falava sobre honra, glória e prestígio. Falava sobre o reconhecimento que teriam e a gratidão de sua nação diante de seu serviço.
Mas os Generais e recrutadores pareciam se esquecer de todas essas promessas quando iam avisar aos familiares desses jovens sobre sua “bravura até os últimos instantes”. E comigo não fora diferente.
O maior medo de quem tem um ente querido na guerra é avistar um homem fardado à sua porta segurando uma carta e um saco de papel. Todos sabem o que isso significa.
E é com isso em mente que abri a porta da frente há exatos 365 dias, formalizando a morte de Thomas por uma carta padronizada e insensível de seu superior, junto de seus pertences recolhidos de sua tenda no fronte.
O soldado nada diz, apenas retira o quepe da cabeça em um gesto que, em algum lugar do mundo, significaria respeito.
Essa despedida gloriosa era deixada de fora nas propagandas ufanistas do governo.
Toda a glória prometida resumida em um corpo jogado no campo. Todo reconhecimento e gratidão em um aceno de cabeça, uma carta padronizada e uma aliança dentro de uma sacola de papel.
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Torn•hes
FanfictionApós a morte de seu marido durante o serviço ao exército por falta de cuidados médicos, Anna decide abandonar o conforto de seu lar na capital inglesa e se voluntariar como enfermeira na Cruz Vermelha. Confiante de que sua experiência como parteira...