2. Capítulo Dois

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Não posso negar que me senti culpado por fazer coisas às escondidas de minha família, mas ninguém gostaria de saber o que eu andava fazendo sem que eles soubessem. Não era exatamente algo fora da lei, mas tinha um significado pesado para minha mãe e irmãs; era inegável que magoaria e eu entendia o porque, e eu jamais gostaria de correr o risco de acabar chateando e frustrando as vontades delas no meu futuro. Só que faltavam oportunidades de que eu proporcionasse tudo que minhas mulheres vinham merecendo, fazia pelo menos um ano que eu sequer me sentia em condições de tomar café, com a possibilidade de que tanto minha mãe como irmãs pudessem querer comer um pão depois das refeições e não ter algum sobrado.
Meu pão, que deveria ser de alguma delas mais tarde.
Entrei no estabelecimento de exterior decorado em tons escuros e detalhes sofisticados. Algumas pessoas paravam sob a cobertura da entrada, a maioria se sentava em banquinhos próximos à plantas e outras decorações mais modernistas. E só as ignorei, não era meu objetivo ali, de qualquer modo. Meus olhos passearam pelo salão da forma mais despreocupada possível, não imaginaria situação onde me sentisse mais aéreo e focado na preocupação de que nenhuma das mulheres de minha família tenham me visto partindo durante a noite. Era e sempre seria uma dificuldade terrível admitir para mim que eu era tal qual uma prostituta. Uma prostituta que afinal estava ali só para os desejos das pessoas que eu mal fazia ideia de quais eram suas intenções.
Um arrepio correu minha espinha, era uma aflição terrível e sem tamanho, constrangedora. Sem cabimento algum, transtornável.

Ultrapassei todos meus pensamentos dirigidos à minha baixa — ou questionavelmente, nenhuma moralidade. Em alguns momentos eu até pensava que eu merecia todo meu sofrimento, mas soava rude pôr alguém como eu em ângulo de sofrimento quando se tinha a comparação as minhas irmãs ou minha mãe. Ignorei todas as vozes que me atormentavam a cabeça e permaneci de peito aberto, caminhando ao salão reservado a funcionários da casa noturna. Por segurança dos próprios, todos ali presentes usavam máscaras características e comigo não era diferente. A coloquei uma rua antes da que levava para boate. Era pleno e absurdo sigilo — pondo em vista que, além de me sentir sujo e merecedor do sofrimento, era quase explicitamente proibida qualquer menção de trabalhos de prostituição na província de Erodes. Num momento difícil dos meus dezoito anos eu acabei pensando que seria uma boa ideia trabalhar nesse lugar, já não via nada a perder, de qualquer forma. Mesmo que seja triste, era a opção. A única chance, mesmo que eu estragasse qualquer relação saudável com alguma futura parceira. Parceira que eu considerasse, digo desse modo. Alguém que eu gostasse de verdade.
Nunca fui bem o tipo de pessoa Piegas ou antiquada, mas acho que pelo menos sua primeira não deveria ser com um prostituto barato, deveria ser lembrada de alguma forma positiva.

Bem, de algum modo, pelo menos consegui convencer o dono da boate que não poderia me deitar com nenhum cliente, no máximo uma sessão de canto sem roupas.
Mas eu permanecia sujo, com ou sem aquilo.

Peguei meu figurino no quarto, algumas maquiagens — um batom carmesim, um blush rosado em tom claro e meu tom de base — e um par de sapatos semelhantes com os que tornara de vir para o estabelecimento. Botei a blusa social, a calça de alfaiataria moldada em meu corpo e uma gravata talvez tão preta quanto a escuridão. Em seguida, meias brancas e, por fim, o sapato escolhido pela figurinista da boate. Penteei meus fios para trás com gel e passei uma camada fina de maquiagem, não era minha praia, mas eram todos ossos do ofício. Parecia mais cansativo para mim ter o desprazer de admitir para mim mesmo que era dessa forma que arrumava uma quantia modesta de dinheiro que eu suava no mínimo um mês inteiro, quando infelizmente poderia cogitar a possibilidade de arrumar outro diferente emprego e me matar ainda mais de exaustão. Me soou rude, até em minha injustiça pensar em desistência quando tantas pessoas dependiam de mim.
Chacoalhei a cabeça, me ergui e saí da área reservada para todos os funcionários, respirando fundo e pesado. A boate tinha um dos maiores públicos possíveis da semana e isso me deixou relativamente mais tranquilo, suspirei, o agrado dessa semana seria maior.

Mas em compensação, minha culpa me consumia mais do que qualquer coisa.

Agia plenamente no automático, segurava o violão com os dedos firmes, buscava algum lugar centralizado na multidão só para que me distraísse cantando mas sucumbi à pressão maior. O homem mascarado me encarava talvez tal qual uma presa no meio da savana africana; me senti verdadeiramente nu. Mas não nu de pelado, nu vulnerável. Como se eu soubesse que ele sabe sobre mim, mais do que talvez eu gostaria. Minha palma suou e meus dedos pressionaram tanto o objeto amadeirado em minhas mãos que seus nós ficaram mais alvos que a neve, dei por mim que estava tremendo quando soltei um ar que nem percebi ter prendido. Desviei meu olhar daquele ponto em especial da plateia e foquei no bar. Nenhum conhecido, perfeito.
Suspirei — talvez pela milionésima vez nas últimas horas — e me resgatei o pingo de coragem que me sobrara. Comecei a tocar o violão lentamente, me soltando ao corresponder da música e seu refrão. Pelo menos com isso eu me sentia tão audaz, livre. Um pássaro desengaiolado não se sentira mais liberto quanto eu; mesmo odiando as circunstâncias, a música era com certeza o que não tinha me feito desistir até agora. Me escorava desesperadamente na paixão que a música e suas melodias me passavam, usando como aval de todas as minhas frustrações o motivo pelo qual eu não me sentia feliz ser o fato de não permitir a vida musical me consumir. Minha paixão pela melodia era talvez mais intensa do que qualquer coisa escrita por Shakespeare ou algum outro romancista clássico e atemporal. Eu dependi sempre de notas musicais para que a vida fosse cinquenta porcento mais tolerável e eu não quisesse tanto desistir e deixar tudo para trás.

Mesmo que eu imaginasse que a tortura fosse ser totalmente maior, agradeci de forma muda quando percebi ser recepcionado por palmas de agrado da plateia, sorri terno e me curvei para agradecer, imediatamente saindo do palco. Se não fosse o lugar tão cheio, teria já me debulhado em tantas lágrimas possíveis naquele porcelanato majestoso que decorava aquele terrível antro de perdição. Meus olhos pesaram e as lágrimas se acumularam na parte inferior de meus cílios curtos. A agonia se instalou novamente em mim e eu, novamente teria corrido como um desesperado — porque, afinal das contas eu realmente era. Me privei de jogar meu resto de dignidade e me portei com classe, respirando fundo e caminhando finalmente até meu pseudo-camarim, para pelo menos chorar em paz e tranquilidade.
Mas minha esperança foi cortada por uma voz, uma infeliz e característica voz. A voz do mascarado. Me virei de supetão, apertando os dedos na barra do paletó escuro.

Aquela noite tornaria de ser longa demais para o que eu havia planejado. Novamente, pensei na possibilidade remota de desistência. Não. Não eu, falava até como se eu tivesse algo melhor. Mas se quisesse, realmente quisesse, eu teria? Poderia me arriscar?

Me calei, acenando para o homem.

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Efeito Azul Celeste • JJK + KTHOnde histórias criam vida. Descubra agora