Sobre Seguir - parte 1

5 0 0
                                    

Hoje foi um dia interessante, não acha, Zé? Um dia interessante.

Saindo do bar, caminho pelas ruas mal iluminadas do bairro em direção á um hotel barato em que costumo me hospedar. Minhas coisas estão lá. Quer dizer, o que sobrou das minhas coisas.

Eu tinha uma casa, mas percebi que não faria sentido mantê-la se eu não estaria mais aqui no próximo verão, então a vendi e estou gastando o meu próprio dinheiro, como já deveria ter feito. Não é curioso isso? Passamos a vida toda nos fodendo e construindo nosso império de sujeira para morrermos sem ter aproveitado o lixo. Pensamos e dizemos, á nós mesmos e aos outros, que isso é para o futuro, que estamos "investindo" na nossa profissão, na nossa estabilidade financeira... Porra, fazemos planos de saúde para tratar na velhice de doenças que, na maioria das vezes, nós próprios nos causamos e cultivamos durante a vida! O pior é que nunca vivemos de fato.

Você discorda de mim, Zé? Faça o experimento: olhe para toda sua vida e conte em quais momentos você realmente se sentiu vivo. Eu não te conheço, amigo, mas aposto que foi menos de 30% dela. Eu queria aumentar minha porcentagem, então - no que as pessoas chamaram de "surto de artista" - eu vendi tudo: minha casa, minha biblioteca, meu carro, tudo que um dia eu achei ser importante e necessário, tudo que um dia pensei que precisasse para enfim me sentir vivo... Mas que não me fez sentir assim.

A vida de nômade é complicada, mas tem lá seu glamour. Hoje em dia posso dizer que eu sinto algumas coisas... Algumas coisas diferentes do vazio e da monotonia de sempre. Como você pode ver, alguns dias são interessantes.

No caminho ao hotel, viro uma esquina em uma via rápida. Não sei mais que horas são e estou muito tonto para contar os pontinhos no relógio, mas deve ser cedo demais e tarde demais ao mesmo tempo, porque tudo está vazio. Ainda está escuro, mas as luzes dos postes daqui iluminam o asfalto como se fosse dia. Paro na beira do meio fio e, em um lampejo de memória, lembro de um momento. Um momento que se repetiu várias vezes durante os anos. O momento em que coragem e covardia se misturam na garganta, no estômago, como uma massa indigesta de indecisão, de medo, de fracasso. Não sei se é efeito do álcool, dos remédios, dos dois ou se é só minha imaginação fértil, mas eu consigo me ver, eu consigo sentir... Consigo me sentir ali, parado na beira do meio fio, esperando para atravessar a rua. É dia, próximo ao horário do almoço. Eu arrasto comigo minha bolsa no ombro como o fardo que ela representa. Olho para a rua e vejo um caminhão vindo na faixa mais próxima a mim. Ele está relativamente longe, mas vem em uma velocidade que não me permitiria atravessar. E nesse instante eu penso em como seria se eu só... desse mais um passo. Um passo é o que nos separa do fim. Um passo e tudo acaba, você para de sentir. Engulo em seco com a ideia. É de fato tentadora. Fecho os meus olhos, sentindo um frio na barriga tomar conta e se espalhar por todo meu corpo. No entanto, instantaneamente faço, sem querer, uma rápida recapitulação das tarefas do dia e do resto da semana que, por causa desse passo, eu não faria mais. Essa é uma manobra da sua parte consciente, na tentativa de te impedir de seguir seu impulso. É... funcionou. Lembrei que visitaria Anna na quarta, uma "reunião de negócios inadiável", como bem me lembra ela. Ainda de olhos fechados sinto o vento bater em meu rosto quando o caminhão passa por mim.

Agora, aqui, sinto o mesmo frio na barriga se espalhando por tudo. Aquele dia eu não dei o bendito passo, mas agora eu dou. Por outros motivos, é claro. Ao descer do meio fio na rua deserta, caminho até o meio das faixas e olho para trás, de onde eu vim, onde eu havia parado anos atrás. Aquele homem que não queria sentir, eu ainda vejo sua sombra lá. Hoje eu preciso sentir, Zé. Para saber que de algum modo, tudo isso valeu, que não ter dado aquele passo foi a decisão certa. Viro para frente e sigo andando, cambaleante, no meio da faixa. Me sinto leve por deixa-lo para trás... Leve... Leve até demais, chega a ser desconfortável. Hoje dou um passo e outro passo e mais um, porque não tenho nada que me impeça, Zé. Nem mesmo Anna.

Eu não tenho mais Anna.

***

Acordo por volta das 13h com um pouco de dor de cabeça. Caminho até um analgésico no armário do banheiro. Preciso me recompor e comer alguma coisa, porque hoje é sexta-feira, dia de terapia.

Para falar a verdade, a terapia de fato não me ajuda muito. Eu já penso sobre minha vida e meus problemas sozinho, não preciso de um lugar e um horário para me obrigar a lidar com isso, entende? Não é uma crítica, Zé, muitas pessoas precisam disso e tudo certo, mas não é por isso que eu faço. Também não tem nada que a pessoa possa me dizer sobre mim ou minha vida que eu já não tenha pensado, então também não vou lá para ouvir um conselho. Além do mais, terapeutas são péssimos em dar conselhos, o que é bem irônico, não acha?

Bom, faço terapia porque gosto da sensação de ter mais alguém nos meus pensamentos além de mim. Claro, além de você também, Zé. Me sinto um pouco melhor depois de falar sobre essa bagunça por uma hora. É como se tudo estivesse bem, já que esse pensamento não é mais só meu. Me sinto menos sozinho por saber que outra pessoa agora também está lidando com os pensamentos que antes eram só meus. E eu não espero uma solução, uma conclusão ou qualquer coisa assim. É bom só o fato de saber que tem alguém ouvindo, alguém preparado para isso, alguém que me deve isso, alguém por quem eu não sinto nada, que não preciso me importar em troca, alguém que eu não precise me preocupar em não assustar com os cantos mais obscuros e sujos de minha mente. É como uma confissão dos meus segredos mais íntimos (aprecia essa ironia, amigo?)... com o bônus de uma cláusula de confidencialidade.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Dec 08, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Relatos de Uma Mente ConfusaOnde histórias criam vida. Descubra agora