Contos de Andando em Círculos

Quarentena

*Esse conto se passa um ano após os outros quatro, em 2020. (Andando em Círculos ocorre em 2018)

O mundo havia virado de ponta cabeça com algo que ninguém, nem o vidente mais confiável do mundo, poderia apostar.

De repente, estávamos em uma quarentena que ultrapassava todas as previsões iniciais e que já se direcionava para seu quarto mês. No começo foi até divertido, pensei que poderia colocar minhas séries em dia, passar um tempo pensando no roteiro que planejava a algumas semanas e dormir bastante. 

Acontece que eu já zerei a Netflix, a Amazon Prime e todos os sites piratas que encontrei pelo caminho. Não existe um filme, documentário ou série que eu já não tenha assistido desde março. E dormir tem sido a última coisa que fiz, visto que meu sono foi desregulado completamente. 

Claro, meu roteiro, talvez algo produtivo fosse gerado por toda essa pandemia se eu conseguisse sentar e planejar alguma coisa interessante, mas, como pensar em qualquer coisa quando milhares de pessoas estão morrendo pelo mundo? É impossível e concentrar assim. 

Mês passado, recebi a preocupante noticia de que Simone tinha sido diagnosticada com a doença que não deve ser nomeada por causa de alguma encomenda que não tinha sido desinfetada de maneira apropriada. Fiquei tão nervoso que não consegui comer direito por dias, mas tudo ficou bem e ela se manteve estável e nem Tulio, nem seus pais foram infectados. 

É surpreendente que nem mesmo com a pandemia minha mãe fique próxima de nós. Claro, trabalhar de casa com todos os problemas da economia atualmente está sendo um estresse inimaginável, porém pensava que as coisas poderiam ser diferentes com o mundo acabando. 

Sinto que Guilherme pode me matar a qualquer momento porque tenho sido muito carente e desesperado por atenção. Ele não entende que sinto saudades do meu namorado a cada cinco minutos? Do que serve um irmão se não for para te abraçar e dizer que tudo vai ficar bem? Ok, eu sou um pouco chato sim. 

Pego o notebook no colo e conecto no Zoom, deu a hora marcada para nossa vídeo chamada semanal. 

— Boa noite! — Digo animado olhando para todos os quadradinhos com rostos das pessoas que mais amo no mundo — Rafael, para de gritar no microfone por favor. 

— Eu nunca vou entender por que o Thiago e o Gui ficam em dois computadores diferentes. — Simone fala, estava ao lado do irmão — Parece que é pra deixar a ligação mais pesada, sabem que a internet do Caio é uma merda.

— Uma merda teu cu. — O garoto responde, a imagem tremendo.

— Olhem a boca! — Eu rio — Sendo sincero acho que o Guilherme está tentando ficar o máximo afastado de mim possível. 

— Garoto, eu dividi um útero contigo. — Consigo ouvir a voz dele no outro cômodo — Não tem como a gente ficar afastado. 

Ele não estava totalmente errado. 

— Ok gente, o que a gente vai fazer hoje? Ouvir música, assistir a um filme?

— Falar sobre o fato de que o Rafael não para quieto em casa. — Caio sugere, sua voz saindo robótica.

— Eu uso máscara! 

— Ok, terror da OMS. — Interrompo — Ninguém aqui vai dar lição de moral no Rafa não, deixa ele quieto. 

— Obrigado, Thiago. Finalmente alguém do meu lado.

— Até porque sabemos que com burro não dá muito pra argumentar. — Completo. 

Todos começam a rir, com exceção do garoto, que cruza os braços de forma irritada.

— Se eu pegar Covid, juro que a primeira coisa que faço é ir na porta da sua casa espirrar. 

— Nosso condomínio tem porteiro — Guilherme avisa — E é bem fácil de barrar a entrada.

— Galera, se o dito cujo aí quer parar numa cama de hospital, o problema é dele. — Simone argumenta — Quando a pandemia acabar, eu fico no cargo de encontrar um namorado novo pro Caio. 

A maioria de nós esboça um sorriso, mas Caio e Rafael parecem incomodados, como se esse fosse um assunto que não quisessem tocar. Não faço ideia do que está acontecendo entre eles, então decido mudar de assunto. 

— Ok, vamos cantar no karaokê online? Tem uma música do álbum da Dua Lipa que...

— Thiago, não! — Todos falam ao mesmo tempo. 

E isso é divertido. Ficamos mais algumas horas jogando conversa fora e brincando até que alguém diz que está com sono e todos nós decidimos nos despedir. Guilherme decidiu vir até meu quarto em um momento da chamada e agora estamos jogando xadrez tentando fazer as horas passarem até que estejamos com vontade de dormir. 

É assim que pretendo sobreviver a essa quarentena. Com minha família e com meus amigos. Em algum momento, novas séries serão lançadas, vou sentir vontade de escrever e todo essa névoa de más notícias irão passar. Enquanto isso, vou me dar ao luxo de não me concentrar o bastante. De aproveitar esse tempo para ficar mais próximo — mesmo distante — daqueles que realmente importam. 

Vamos passar por tudo, juntos.