CAPITULO 4

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Escrevi: "De repente escureceu e começou a chover". Minha irmã, que mexeu em muitos trechos do livro, achou a frase muito pobre e reescreveu:

"De repente ficou tudo cinza. Foi como se Deus tivesse mexido na Sua televisão e tirado a cor da Natureza. Depois Ele virou o botão do contraste e escureceu subitamente a tarde. Não satisfeito, foi aumentando o volume dos trovões. Logo começou a cair aquele chuvisvo que aparece nos dias mal sintonizados".

Minha irmã é mesmo genial. Não sei onde ela vai buscar essas idéias. Que cabeça!

--- Como você consegue, mana?

--- Basta um pouco de imaginação!

--- Um pouco? Precisa de imaginação à beça! Transformar Deus num telespectador...

Ela sorriu, superior:

--- Ele já é um espectador privilegiado. Fica vendo tudo lá de cima!

--- Sim, mas do jeito que você escreveu ficou parecendo que Ele vê pela televisão.

--- Quem sabe? Quem sabe ele não está numa sala cheia de telinhas e controles editando a vida aqui embaixo? --- disse ela se afastando.

Eu me esforçava para reproduzir as imagens da mana na minha telinha interior, mas elas não combinavam: nuvens, televisores, relâmpagos, antenas e onde está Deus? Só consigo jogar na telinha aquilo que vi.

A chuva aumentava ameaçando virar temporal. A chamada para o jogo entrou no ar. Parei de brincar com os controles da Fantástica e tratei de ligar as outras que eu não ia deixá-las fora dessa transmissão. Plim-Plim dá muita sorte no Brasil e Babá, pelo que sei, acompanha a Seleção há mais tempo do que eu, há 15 anos.

Minha irmã chegou da rua encharcada e ao invés de trocar de roupa meteu a cara no meu quarto para encher o saco.

--- Por que três aparelhos ligados, Tavinho?

--- Porque não tenho quarto! --- engrossei logo.

Ela abanou a cabeça com um ar de reprovação e disse que a imagem seria a mesma para todos os canais. Ela pode ser um geniozinho, mas me deixa muito irritado quando resolve dizer como são as coisas.

--- Tá legal! --- reagi. --- A imagem é a mesma, mas os locutores e os comerciais são diferente!

--- E quem está interessado em ver comerciais?

--- Eu! Eu quero ver tudo! Ponto!

--- Três locutores ao mesmo tempo? Ninguém vai entender nada.

--- Deixa mana! Só quem vai ver o jogo aqui sou eu e papai. A galera vai lá para a salinha.

Na reforma do apartamento, mamãe mandou fazer uma salinha só para televisão. É por isso que eu digo que a televisão é mais importante do que qualquer outro eletrodoméstico. Nunca ouvi falar que a geladeira ou a encaradeira tivessem sua salinha.

A televisão da salinha se chama Abelha-Rainha porque, segundo papai, tudo dentro da casa gravita em torno dela. Sou a favor de que todos os televisores tenham nome (o de Maria, em preto e branco, atende por Botafogo). Eles dão tantas alegrias, provocam tantas emoções, ensinam tanta coisa à gente que não podem ser simplesmente chamados de "aparelhos". Às vezes fazem mais companhia do que um ser humano.

Mamãe escutou minha discussão com a mana e apareceu na porta dando ordem: "Vamos ver o jogo todos juntos". Detesto assistir futebol ao lado das mulheres que não entendem nada e ficam falando um monte de besteiras.

--- Só vou se puder levar a Fantástica!

--- Tudo bem --- falou a xereta da mana. --- Mas sem som!

--- Então vou levar também as outras!

Minha irmã ficou furiosa:

--- Não senhor! Quatro aparelhos naquela salinha! E nós, onde ficamos?

Em pé no corredor?

Maria carregou a Fantástica e eu me senti muito pouco à vontade para desligar Babá e Plim-Plim. Prometi que à noite veria nelas o videoteipe completo da partida.

--- Onde é que eu ligo? --- berrou Maria com a Fantástica no colo. --- Não tem tomada sobrando!

Num ponto eu concordo com a mana. Quando ela acusa as firmas construtoras de ficarem economizando buraco de tomadas nos apartamentos. A gente tem que se virar com benjamins, e como nunca ninguém tem sobrando, pedi um emprestado ao vovô, que mora no andar de cima.

Papai entrou em casa todo molhado e minha irmã foi logo dizendo:

--- Parece um pinto molhado, não parece?

Eu disse que sim para encurtar a conversa, mas para mim ele parecia com o que sempre foi: nosso pai, só que todo molhado.

Papai vestiu o mesmo "uniforme" da Copa anterior, guardado para a ocasião, e instalou-se na sua poltrona. Eu, Maria e a mana sentamos no tapete; mamãe e vovô no sofá, e titia, que fica sempre com as sobras, na cadeira dura. O juiz chamou os dois "capitães" e atirou a moeda para o alto.

--- Pra que eles estão tirando cara-ou-coroa? --- mamãe iniciava sua série de perguntas.

--- Para escolher o lado do campo --- respondeu papai com uma calma contida.

--- Mas os dois lados não são iguais? --- agora era titia.

Antes que alguém achasse um lado maior do que o outro, abrindo uma interminável discussão, papai falou grosso e pediu silêncio. No meio do silêncio entrou a voz de maria.

--- Por que o juiz tá todo de preto?

Papai não agüentou e respondeu:

--- Ele perdeu a mãe!

O juiz de luto apitou o início da partida. Maria fez figa, mamãe fez o sinal-da-cruz, papai fez um gesto de incentivo e Deus fez a maior sujeira: desligou a Natureza.

Ficou tudo no escuro.

O menino sem imaginaçaoOnde histórias criam vida. Descubra agora