— Vovó só pode estar ficando maluca — Luiz sussurrou enquanto subia as escadas em silêncio depois da ceia.
As crianças andavam em uma fila única em direção ao quarto que dividiam.
— Eu acho que ela só queria assustar a gente — Alice também sussurrou, seus passos leves como plumas ao tocar o chão.
— Não importa, de qualquer forma. Amanhã teremos novos presentes para abrir.
— Eu acho que ela estava falando a verdade. Não era apenas uma história — Ana disse parando de andar, seus olhos ficando cada vez mais moles pelo sono que tomava seu corpo.
— Você é uma medrosa, Ana.
— E você é um menino mal, Luiz, se Père vir esta noite, será para buscar você.
As outras crianças riram de Ana e terminaram de subir as escadas, prontas para dormir.
★
Pouco depois que o relógio marcou uma da manhã, a janela do quarto onde as crianças dormiam se abriu e um vento congelante dançou sobre suas camas, despertando Ana e Luiz.
— Por que você deixou a janela aberta, pirralha? — o menino resmungou, puxando o grosso edredom por cima da cabeça.
— Eu não deixei, Luiz — sussurrou a menina, olhando para a noite escura e silenciosa. Seu corpo tremeu quando mais uma rajada de vento a atingiu.
— Preste mais atenção da próxima vez, Ana...
Então a campanhia começou a tocar de forma alta e persistente. A janela batia contra o vento e barulhos de risos e vozes chegaram aos ouvidos dos dois meninos. Os outros dormiam como se nada estivesse acontecendo.
— Você está ouvindo isso, Ana? — perguntou Luiz retirando o edredom da cabeça e olhando assustado para a irmã.
— Sim, será que Pére...
— Pare de bobagens, deve ser apenas uma brincadeira de mal gosto. Vamos descer e ver o que está acontecendo.
— Eu não vou com você, Luiz.
— Mamãe provavelmente vai acordar com o barulho, é melhor do que ficarmos aqui, Ana.
Então os irmãos desceram lentamente pelas escadas, seus pés congelando contra o chão frio.
Um completo silêncio dominava a sala e nenhum adulto parecia ter acordado com tal barulho.— Provavelmente apenas um engano.
Luiz agarrou a mão da irmã e a puxou com agilidade em direção ao quarto, querendo deitar em sua cama o mais rápido possível.
— Luiz Morrison? Onde pensa que vai? — uma voz rouca, velha e gasta sibilou, o som vindo da lareira.
O corpo do menino congelou e seu coração começou a bater alto, tão alto que tambores pareciam estar sendo tocados no centro da sala.
— Para a cama — sussurrou em resposta, com seus lábios ficando secos e seus olhos molhados.
— Não, você virá comigo.
— Quem é você? Eu vou chamar meus pais.
— Pode chamar, ninguém ouvirá você, Luiz. Ninguém sequer se lembrará de você quando amanhecer, será como se nunca tivesse nascido.
Uma risada baixa ecoou pela sala e passos pesados se aproximaram das duas crianças. Sons de correntes eram ouvidos, assim como os chiados de ossos se chocando.
— Você foi mal, tão mal que sequer merece ganhar carvão. Farei dos seus ossos carvão para dar a outras crianças.
Então eles viram, uma sobra tão negra como o ébano, que arrastava grandes correntes prateadas e gastas presas aos pés e tinha olhos vermelhos como sangue. Em suas mãos um grande saco pendia, no fundo podia se ver o movimento de corpos se debatendo.
— Você... — Ana sussurrou dando um passo para trás.
— Sim, eu sou Père Fouettard, a Sombra do Noel...mas você menina, você não devia estar aqui.
Os olhos vermelhos e brilhantes da sombra se voltaram para a pequena menina de cabelos negros, que sentiu seu irmão apertar mais ainda sua mão.
— Deixe ela em paz — Luiz sussurrou, se esforçando para manter a voz estável.
— Não adianta querer fazer boas ações agora, garoto. Você foi cruel e irá pagar por isso.
Quando Fouettard tentou dar mais um passo a frente, suas correntes o impediram e um rosnado animalesco saiu de sua garganta quando uma luz dourada iluminou a escuridão. Iluminou tudo, menos sua silhueta de sombras.
— A menina foi quem mais sofreu nas mãos dele e mesmo assim o ama tanto a ponto do encanto não recair sobre ela — uma voz doce ecoou da luz e logo uma criança vestida em roupas verdes se materializou no centro da sala, entre os irmãos e Fouettard, uma menina de cabelos cor de mel que possuía uma longa cicatriz no pescoço — Ana pode o salvar se assim desejar.
A garota caminhou com passos delicados pelo carpete marrom, sua luz dourada iluminava a escuridão quando se aproximou da menina e pegou em sua mão.
— Você deseja salvar seu irmão, Ana?
— Sim — o sussurro foi firme, assim como a força que a menina usou para segurar a mão do menino.
— Então peça a nona rena, chame por Blitzen e ela levará a Sombra embora. Mas apenas um pedido do seu coração puro chegará as orelhas dela. Você deve desejar que seu irmão não tenha os ossos transformados em carvão.
Nenhuma resposta saiu dos lábios de Ana, mas seus olhos se fecharam com força e em sua mente palavras ecoaram:
"Blitzen, busque Père Fouettard, eu sempre acreditei nas histórias. Eu sempre acreditei que vocês eram reais. Por favor,Blitzen, dê mais uma chance ao meu irmão, sei que ele pode melhorar, por favor, Blitzen..."
Então um clarão atingiu as pálpebras fechadas de Ana e ela ouviu o suave barulho de cascos e o rosnar da Sombra.
— Isso não é justo, ele foi mal.
— Ele é amado, Père, e o amor vence qualquer ódio que você carrega em seu coração.
Outro clarão ocorreu e tudo ficou em silêncio.
— Ele já foi, Ana, conserve seu coração puro e cuide de seu irmão.
Então a única menina assassinada por Pére também sumiu, deixando os dois irmãos com os corações batendo fortemente contra o peito.
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A sombra do Noel
Historia CortaSeja bonzinho e ganhe presentes. Seja mau e tenha seus ossos transformados em carvão. 🏅Destaque em Contos no mês de Novembro de 2021 🥇1º lugar no Concurso de Contos BN 🥇1º lugar no concurso A Seleção 🥈2º lugar no concurso Golden Butterfly 🥈2º...