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– Afinal, que é que houve aqui, hein? – indagou um dos dois investigadores que armavam o perímetro ao redor da moldura presa à parede.

A moldura era protegida por uma vidraça. Ou, pelo menos até pouco, costumava ser. Agora, a maior parte da vidraça jazia em centenas de pedaços minúsculos espalhados pelo chão misturados à grossas manchas de sangue.

– Algum retardado atacou a moldura. Digo, a vidraça. Deu uma série de cabeçadas até ela estourar, junto com parte da própria cabeça... Foi detido antes de encostar na pintura, mas acabou arruinando um bocado – seus olhos indicaram brevemente a pintura dentro da moldura.

– Meu Jesus... Que merda, hein?

– É... Você devia ver o guarda e o punhado de pessoas que acompanharam ao vivo. O guarda, pelo menos, está recebendo tratamento psicológico lá no escritório. Não consegue nem falar direito.

– E a galera? Ninguém fez nada?

– Ah, fizeram sim – puxou o celular do bolso, vasculhou alguma coisa na tela dele e esticou para o primeiro guarda. Era um vídeo.

Quando o companheiro curioso deu play, viu a cena visceral já pega pela metade. O sujeito dava fortes cabeçadas contra a vidraça que se estilhaçava no chão. Era possível ver fragmentos da pele da testa do indivíduo grudados aos minúsculos cacos de vidro e o sangue jorrando de sua cabeça. Ele gritava algo.

"Não está perfeito! Falta algo! Não está perfeito!".

O vídeo terminava com um tumulto emendado à uma gritaria. Fazendo o sinal da cruz ligeiramente longo, o curioso perguntou.

– Que é que falta? – tornou a observar a pintura mais atentamente, notando grandes respingos de sangue espalhados pela tela.

– Eu sei lá, se entendesse de arte eu não estaria investigando um caso sobre pinturas de gente que eu nem conheço – sob uma breve pausa, olhou ao redor conferindo as outras molduras presas à parede ao longo do corredor – Eles é quem estariam investigando as minhas pinturas – riu, acompanhado pelo colega.

– É cada louco né... E o cara, foi impedido? Morreu?

– É, um dos guardas o imobilizou, logo chegou a polícia e prendeu o cara, mas levaram direto pro hospital. Vai ser tratado primeiro. Mas pela violência das pancadas, não sei não...

O primeiro dos investigadores policiais assentiu como se tivesse compreendido. Mas algo ainda o incomodava. A cena simplesmente não fazia sentido.

– Sei o que tá pensando, Ramos. Não faz sentido algum, não é? O pior nem é isso. Sabia que não é a primeira vez que isso ocorre?

– Como assim?

– Essa pintura – apontou para ela como se a acusasse – Já foi alvo de ataques outras duas vezes. Sempre de maneira visceral. O sujeito para em frente a ela como quem não quer nada além de naturalmente observar a peça. E em instantes tem o surto e começa a atacar. Foi por isso que colocaram a vidraça.

Os pelos da nuca do policial se arrepiaram. Meio indeciso, deu dois passos à frente e, por trás da fita de plástico que isolava um perímetro de um metro e meio, contemplou a pintura.

– É a primeira vez que arruínam tanto ela assim – informou o primeiro sujeito.

– Como é que sabe tanto sobre isso? – Ramos lhe lançou um olhar misto de curiosidade e suspeita – Tá começando a acompanhar o mundo das artes, Petroski?

– Ah, quem me dera – riu, balançando a cabeça e aproximando-se da fita de plástico – Eu só achei bizarro, sabe. Os caras basicamente se mutilarem por causa de um quadro. Tipo, a troco de quê?

– Será que queriam destruir?

– Não acho... Bom, talvez, mas não sei. Os dois casos anteriores, embora tivessem tocado a pintura, não chegaram a danificá-la dessa forma.

– Ah é, e como foi? – não havia dúvida, Ramos tinha sido fisgado pela dúvida.

– Não sei muito bem. Sei que um deles socou tanto a redoma que ficou com a carne das mãos no vivo. Não chegou a estilhaçar ela desse jeito, mas fez um buraco pelo qual enfiou a mão lá dentro e tocou a pintura por alguns segundos até que o pegaram.

Os dois ficaram em um breve silêncio que não foi incômodo. Divagaram dentro de suas próprias cabeças até que Petroski concluísse.

– O museu não gosta de falar sobre isso. Trás má publicidade. Sabe como é... Alimenta o mito...

– Que mito?

– Ah, dizem que essa obra é amaldiçoada.

– Como assim? Por quem?

– Pelo próprio pintor, acho. Pela maneira com que pintou a obra ou algo assim.

– E como foi?

– Aí eu já não sei, Ramos. Você vai ter que se virar pra descobrir o resto da história. Minha pesquisa foi só até aí – riu, dando um leve tapinha sobre o ombro do parceiro.

– E como é que eu vou fazer isso?

– Não sei. Sinceramente, não sou muito fã de história da arte, então vou deixar essa com você. O meu trabalho é reunir sangue para análise, o que já está feito – retirou um tubo de sangue coletado e agitou-o no ar, guardando-o de volta no bolso – E fazer a perícia, o que também já fiz.

– Qual a conclusão? – perguntou Ramos, ligeiramente confuso.

– Bom, ainda precisamos aguardar o laudo médico do indivíduo. Mas eu apostaria em perturbação mental, algo do tipo psicose, sabe como?

– Entendi – disse Ramos. No fundo a resposta do parceiro não havia sido nada convincente. Queria ir mais a fundo.

– Eu tô voltando pra delegacia, lidar com a papelada. Você vem?

– Acho que não. Vou ver se acho mais alguma coisa interessante.

Petroski não estranhou. Ramos sempre era alguns anos mais jovem e menos "vivido" na polícia. Talvez por isso, pensava o policial mais velho, ele fosse mais entusiasta. A famosa "síndrome do super-herói", daqueles que querem resolver tudo e não deixar pontas soltas.

– Ok. Só não vá passar muito tempo olhando pra esse quadro. Não quero que seja o próximo a estourar os miolos por conta... Disso aí – riu alto, acompanhado pelo parceiro que confirmou – Aliás, deixe um pouco de trabalho pros outros. Deixa os estagiários sofrerem um pouquinho também. Faz eles entrevistarem todo mundo, é divertido ver como eles se saem.

Petroski foi embora enquanto acendia um charuto. Ramos tornou a observar a tela salpicada de grandes manchas de sangue distribuídas pela cena retratada que, inclusive, não era nada convidativa. Não era um quadro bonito, no sentido poético da coisa. Não retratava um vaso de flores tampouco uma noite estrelada. Não. Retratava algo pesado e vil, mas o que mais o chamava a atenção era os respingos de sangue sobre a tela. Esticou o braço como se quisesse tocá-la, mas reteve-se.

Olhou ao redor. Os estagiários estavam entrevistando um bocado de pessoas que aparentemente tinham visto o acontecido. Aproximou-se do entrevistador.

– Onde está o guarda?

– No escritório do museu, lá em cima, senhor. Suba as escadarias centrais e vire à direita, verá uma porta bem sinalizada. É lá.

– Obrigado – e dando-lhe as costas, rumou para o local indicado.

A Perfeição da DorOnde histórias criam vida. Descubra agora