Não pôde ir no domingo de manhã à casa de Helena porque teve de organizar os pensamentos. O que ela quis dizer com terminar a pintura? Seria possível que também estivesse planejando doar seu sangue para restaurá-la?

Não podia deixar que ela fizesse isso, porque isso faria com que a corrente continuasse se perpetuando e que mais uma vida fosse ceifada em prol de uma utopia. Aquilo tinha que acabar. Primeiramente precisava impedir que Helena sangrasse a si mesma para alimentar a pintura com mais tinta escarlate. Depois, teria de dar um jeito de destruí-la ou de pelo menos impedir que ela voltasse para o museu. Então organizou um plano.

Passou a tarde bolando um discurso que faria, na melhor das hipóteses, com que Helena desistisse da ideia de terminar a restauração. Tentaria fazê-la desistir da ideia de perfeição. Torcia para que ela o ouvisse. Mas, caso o discurso não surtisse efeito, achou melhor levar um isqueiro e atear fogo àquilo antes que fosse tarde demais.

Se despediu da namorada com um beijo suave em sua testa e disse que precisava resolver o problema do quadro com a pintora deste. Próximo às sete horas da noite ele chegou à casa de Helena, torcendo para que ela não tivesse completado o quadro. Era quase como um ritual e ele estava ali para impedir que esse ritual acontecesse.

A pintora o atendeu da mesma maneira que antes, mas dessa vez com um olhar de satisfação e entusiasmo. Abriu um sorriso elegante.

– Sabia que você viria.

– Eu preciso falar com você a respeito disso.

– Terá tempo para fazer isso. Agora, venha cá.

Convidou-o a entrar e se dirigiu para o sótão sem hesitar. Ramos percebeu que ela havia despachado todos os empregados da casa. Estava tão vazia que podia ouvir-se os ecos dos passos que davam pela escadaria até o sótão. Quando entraram, o policial ficou estático.

Disperso para todos os lados estavam antigas folhas de papel, pedaços de tecidos e até mesmo telas, todos muito antigos e amarelados. Com certeza eram os esboços de Ernesto. De repente, a boca de Ramos tornou-se um grande "O" e ele compreendeu.

– Você é a filha de Ernesto!

– Precisamente.

– Por que não me disse?

– Não queria que sua visão sobre os fatos que cercam minha família passasse por uma espécie de filtro afetivo. Foi melhor assim.

Ele compreendeu. Fazia sentido. Mas passara a confiar menos nela. Enfim, notou a pintura descoberta no centro do sótão como da última vez. Aproximou-se dela e observou-a com a maior atenção possível, fitando mais uma vez aqueles olhos fustigados de dor e remorso, bem como as figuras desfalecidas dos familiares que haviam sido mortos pela pessoa de quem mais esperavam carinho. Aquilo embrulhou seu estômago.

Agora, no entanto, a pintura parecia como nova. As cores estavam todas encaixadas, mas o sangue que jorrava da família assassinada era de um vermelho gasto, quase marrom, como se a tinta estivesse gasta. Agora compreendia Breno; não havia "vibração" naquilo. Por um momento Ramos deixou-se levar e compreendeu, mas no segundo seguinte mudou de ideia.

Quando se virou para trás, Helena segurava o pincel antigo e quebrado com a mão direita e esticava o antebraço esquerdo. A ponta traseira do pincel ainda formava uma superfície finíssima e pontiaguda como uma agulha de costurar sacos.

Eu quero te mostrar como a perfeição se parece. E ela sairá de dentro de mim assim como saiu de meu pai.

A respiração de Ramos passou a ficar mais ligeira. Engoliu em seco e teve certeza de que pôde ouvir as batidas do próprio coração ribombando dentro de sua caixa torácica. Ergueu as palmas das mãos e deu dois passos em direção à Helena.

A Perfeição da DorOnde histórias criam vida. Descubra agora