Acordo com estalitos. O meu caranguejo despertador diz que são horas de levantar. Enfim. Sento me na minha concha, estico as pernas e nado para a penteadeira. Se pudesse falar diria que hoje acordei bonita. Mas não posso.
Olá, sou a Cinthia, uma sereia muda. Sentem o ironismo? Mas calma, sereias teem caudas, e eu acabei de dizer que estiquei as pernas. Então serei uma sereia? Não sei. Vamos rever as características das sereias:
Sereias teem escamas: ✔️
Sereias teem cauda: ✖️
Sereias respiram debaixo de água: ✔️
Sereias cantam: ✖️
Sereias não teem pernas: ✖️ eu tenho. E são lindas.
Ao contrário do que sempre me quiseram fazer sentir, eu sei que sou especial, e isso não tem de ser algo mau. As minhas pernas são lindas, como pernas humanas revestidas de escamas reluzentes. Serve para nadar e andar, o melhor de dois mundos.
Não posso cantar, no entanto tenho um talento incrível para tocar todo o tipo de instrumentos. Que pena né? Não toco o instrumento que é a voz, mas toco mais de 20 outros. Se pensarem nisso, quem fica a perder mesmo?
Sereias teem o poder de obrigar os outros a agir conforme sua vontade, poder que eu não disponho, mas sinceramente, que poder mesquinho para se ter. Em contrapartida não sou afetada pelas suas lindas vozes hipnotizadoras.
Mas chega de falar de sereias, vamos falar se mim. Não me levem a mal, não sou convencida, mas num mundo onde todos te dizem que és uma aberração por seres diferente, se não tiveres uma voz própria no volume ao máximo deixas-te ser sufocada e enterrada no meio de todas as outras vozes.
Hoje é um dia especial. A minha melhor amiga faz anos, mais precisamente 21 anos, e convidou-me para o aniversário. Ter sido convidada não é o faz deste dia especial, mas sim eu ter aceite. Por norma recuso-me a participar de eventos mesquinhos da sociedade, mas tendo em conta que falamos da minha melhor amiga e da maioridade dela, decidi abrir uma excepção. Preparo-me e decido ir tomar o pequeno-almoço. Hoje será salada de algas com plâncton.
Enquanto como a minha salada, aparece uma Alice histérica à minha frente.
- Emergência Cinthia! Um camarão fez um buraco no meu vestido! Não posso aparecer na festa com um vestido esburacado!- diz em pânico a minha melhor amiga. Aline era a herdeira do trono de Aquarine, o nosso reino. E eu tinha muita fé que ela seria uma rainha incrível após o ritual de maioridade dela, onde ela deveria passar 1 mês no mundo dos humanos e só então voltar para poder governar com a sabedoria do que aprendeu.
Idiota, eu sei. Que terá ela a aprender com aquelas espécies mesquinhas que se matam uns aos outros por terra, e dizimam povos? Enfim, tradições.
O mundo terrestre não conhecia a nossa existência. Era pelo melhor. Quando se deu a Guerra dos clãs nós só observámos impávidos. Não tivemos piedade dos humanos que tanto poluiram o nosso lar, mas também não nos revelámos como clã. E aqui, em Aquarine, é tabu falar dessa guerra. O motivo? Consciência pesada. É mais fácil afirmar que não defendemos os humanos por causa da sua poluição, do que admitir que poderíamos ter-lhes mostrado que era o nosso lar que estavam a poluir e assumir que essa solução poderia ter sido a resposta ao nosso problema. As sereias são demasiado orgulhosas.
- Fica com o meu - respondo à albina em linguagem gestual sem prestar muita atenção. A mesma agradece e nada porta fora. Hora de me despachar então, falta 1 hora para a festa. Enquanto me visto, ouço os trambones do reino. Oh não, isto quer dizer problemas. Sigo em direção ao auditório onde encontro sereias a correr de um lado para o outro em pânico. "O que se passou?" tento sinalizar a uma, mas ela só me ignora, como se eu esperasse algo diferente..
Passam-se duas horas, e vejo Aline subir ao pedestal de discurso do rei com lágrimas a escorrer-lhe pelas faces.
- O rei foi assassinado! Há um assassino entre nós!
Do nada, todo o alvoroço acaba. Podia se ouvir um cavalo marinho a nadar de houvesse ali algum.
- Como herdeira do trono, e tendo em conta que o meu ritual de maioridade começaria hoje, foi decidido que eu devo ascender ao trono imediatamente a fim de evitar revoltas. Mas garanto, quem fez isto será apanhado e castigado com prisão perpétua no abismo do esquecimento!
O silêncio continua, prisão no abismo do esquecimento é o pior a fazer a uma sereia. É acorrentá-la ao fundo do mar do triângulo das Bermudas, amordaçá-la e apagar toda a sua existência do mundo marinho. Tudo o que a sereia alguma vez possuiu deixará de existir, e será como se nunca tivesse existido, enquanto apodrece sem poder nadar ou cantar. É realmente um castigo terrível.
- Dispersem! - exclama a nova rainha.
Todos voltamos para os nossos quartos chocados com a situação, decido ler um livro para tirar a minha mente deste assunto e resulta. Durante 10 minutos. Resulta, até que arrombam a minha porta e entra a Aline acompanhada de 12 guardas e se dirigem ao meu roupeiro.
Olho para Aline confusa enquanto tento que ela olhe para mim para perguntar o que se passa.
- Quando te dirigires a mim, será com respeito aberração. Escusas de abanar os braços, quando eu entro tu curvaste perante a tua rainha. Estamos entendidas? Estamos aqui porque temos motivos para acreditar que tu assassinaste o meu pai.
O QUÊ?
- Aline, tu conheces-me desde sempre, és a minha melhor amiga, eu nunca faria algo assim. E tu sabes!- tento gesticular o melhor que posso, tendo em conta as minhas mãos trémulas.
Nisto, um guarda abre o roupeiro e retira um vestido ensanguentado. O meu vestido ensanguentado. O meu vestido ensanguentado que eu emprestei a Aline. Merda. Já percebi tudo.
- Guardas, PRENDAM A TRAIDORA!
Todos eles se jogam a mim, e numa tentativa de me defender ergo a mão é algo estranho acontece... Eles ficam sem ar. Sereias vivem mar, mas respiram oxigénio como todos os seres vivos. E eu estava a tirar-lhes o ar dos pulmões. Como é isto possível?
Mantenho a posição até estes desmaiarem, e volto-me para sair. A Aline olha para mim com receio, e afasta-se do meu caminho.
- Eu voltarei. E voltarei com a verdade. Vai-te preparando. - gesticulo para a loira.
E saio. Nado dali para fora, nado até alcançar terra. E choro, choro muito.
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A queda
FantasyVou vos levar a futuro não muito distante, a uma realidade que permite o sobrenatural, onde poderão ficar a saber por vós mesmos o que acontece quando todos os indivíduos mais fracos de todas as espécies se unem para assegurar a continuidade da vida...