Dormi muito mal naquela noite e passei o dia inteiro pensando no que Luzia tinha compartilhado comigo. Todavia, havia chegado à conclusão de que não concordava com ela. Quer dizer, é claro que concordava em partes. Era muito difícil passar pelo que estávamos passando. Tinha saudade da minha família, dos meus amigos e, meu Deus, a saudades que eu tinha de ver o mar era de enlouquecer. Porém, não era verdade que não havia nada para comemorar.
A COVID-19 já tinha tirado muita coisa de mim, dela e de várias outras pessoas: alegrias, esperanças, empregos, oportunidades e até pessoas amadas. Era injusto demais que ela conseguisse tirar a alegria e as expectativas do Natal e do novo ano. É claro que aquele Natal com certeza seria diferente, mas talvez houvesse alguma forma de manter pelo menos um pouco de sua alegria e de suas esperanças.
E, pensando bem, tinha sido Luzia mesmo a responsável por manter esse espírito vivo em mim. Ela tinha me ajudado a conseguir enxergar um pouquinho fora do meu umbigo e um pouquinho mais amplo. Eu tinha muita coisa para agradecer e muita coisa para ansiar, a começar pela cura de todos os doentes e pela vacina. Sentia que havia chegado a minha hora de retribuir o favor que ela fez para mim e para minha mãe, ao nos reanimar um pouco e revitalizar o espírito natalino que estava um pouco (bastante) morto dentro de nós.
Peguei as mesmas luzes do dia anterior, mas pendurei em minha janela da forma mais harmônica que consegui. Agora era possível dizer que minha janela estava devidamente enfeitada, ainda que não chegasse aos pés de sua varanda que, por sinal, continuava apagada. Para completar a aura natalina, troquei meu boné por um gorro de Papai Noel que havia achado jogado entre as coisas de Natal que tinham naquela casa. Com tudo aquilo, fui até a janela e tentei chamar sua atenção.
Comecei com as mesmas táticas do dia anterior, já que as luzes já brilhavam na minha janela. Primeiro bati palmas o mais alto que pude. Nem sinal de Luzia. Algumas carinhas conhecidas começaram a aparecer nas varandas do prédio dela, porém. Quando comecei a chamar seu nome, mais pessoas apareceram. Eu sabia que tinha gente no meu prédio na janela também porque comecei a reparar nos vizinhos de Luzia conversando com os meus.
— Ei, gente! — Chamei, percebendo que eles poderiam ser valiosos aliados. — Me ajudem a chamar a Luzia para janela.
— A Luzia? — Uma voz veio lá do fundo do prédio. — O que tem ela?
— Faz uns dias que ela não liga as luzes de Natal dela — respondi, o mais alto que eu pude. — Eu não sei como foi para vocês, mas a verdade é que as luzes dela alegraram minha quarentena...
— Para mim também — alguém em cima de mim disse. — Até montei a decoração natalina por conta dela.
— Aqui foi a mesma coisa! — Um casal alguns andares acima do dela disse.
As discussões sobre as luzes de Luzia começaram a se espalhar pelos edifícios e eu dei um sorriso, feliz pela repercussão. Aquelas pessoas eram desconhecidas, mas ao mesmo tempo não eram. Ocasionalmente as via nas varandas e nas janelas. Luzia sabia mais sobre os vizinhos dela do que eu sabia sobre os meus, mas tinha me dado vontade de conhecer um pouco mais sobre eles.
— Sabe o que eu acho que seria legal? — Perguntei, tentando fazer minha voz propagar pelo vão do prédio. — Se todo mundo enfeitasse suas janelas e varandas, só um pouquinho, para chamarmos atenção dela e agradecer pela luz que ela colocou entre nós.
— Adorei! — Uma menina que morava um andar abaixo dela disse, correndo para dentro de casa.
— Vamos sim! — Respondeu o casal, fazendo o mesmo.
— Quer colocar mais alguma coisa na janela? — Minha mãe disse atrás de mim, me pegando de surpresa. — É muito bonito isso que você está fazendo.
— Só quero colocar você aqui do meu lado mesmo — sorri para ela, puxando-a na minha direção.
Todos os vizinhos reapareceram em suas respectivas varandas e janelas alguns minutos depois. O vão, antes completamente escuro, começou a se iluminar com os enfeites de cada um deles. Juntos, começamos a chamar para Luzia todos juntos. O nome dela fez eco e, poucos minutos depois, Ana, sua mãe, apareceu na varanda.
— Meu Deus! — Ela disse, olhando para todas as luzes e voltando-se para dentro de casa. — Filha, vem cá! Você precisa ver isso!
Demorou mais um pouco, mas Luzia apareceu na varanda. De pijama comprido e cara de poucos amigos, ela olhou na direção da minha janela. Observei seu rosto se transmutar enquanto ela olhava de mim para outros pontos do meu prédio e do seu, de boca aberta. Quando eu achei que ela ia falar alguma coisa, ouvi um soluço e percebi que ela tinha começado a chorar. Juntando as forças que eu não tinha tido no dia anterior e me forçando a reproduzir o discurso que tinha montado o dia todo na minha cabeça, comecei a dizer:
— Eu sei que está tudo meio bosta, Luzia — comecei dizendo e ela soluçou mais uma vez, me fazendo crer que talvez eu tivesse começado bem mal. — Sei que é bastante improvável que o ano vire e o corona vá automaticamente embora, mas se teve uma coisa que suas luzes me ensinaram é que essa época do ano é sobre ter esperança.
Luzia se debruçou mais uma vez na varanda, olhando diretamente para minha janela. Ela passou o verso da mão no rosto, provavelmente secou as lágrimas e eu respirei fundo tentando arranjar as palavras certas para continuar. Mesmo como tanto ensaio, eu já tinha esquecido tudo. Todos os meus vizinhos como público nas janelas me deixavam ainda mais nervoso.
— O Natal tem toda essa aura de renascimento e de sermos pessoas melhores — disse eu, sem saber como me expressar da melhor forma. — E o ano novo tem toda essa esperança de dias melhores. Você mostrou, com suas luzes, que não devemos deixar esses sentimentos bons serem enterrados em nós.
— Suas luzes iluminaram a gente, Luzia! — Uma pessoa que morava em cima de mim gritou.
— É isso mesmo — Lili, a dona do cachorro barulhento, concordou.
— E, além disso — minha mãe se meteu na história. — O Natal é uma celebração de aniversário! A gente tem que decorar mesmo.
— Mãe! — Reclamei, mas dei um sorrisinho para ela.
Alguns vizinhos mais próximos e que ouviram o comentário dela deram uma risada. O resto dos prédios continuava engajado em conversas paralelas ou tentava falar para Luzia como ela tinha sido importante para o Natal delas.
— Enfim, obrigado Luzia — disse.
— Isso! — Minha mãe concordou. — Obrigada!
A onda de agradecimento foi subindo e descendo pelo prédio, com todo mundo dizendo obrigada para Luzia. Ela olhava de janela em janela e de varanda e varanda, com cara de quem não estava acreditando no que estava acontecendo.
— Liga sua luzinha! — Minha mãe incentivou. — Estamos sentindo falta dela.
Luzia deu uma gargalhada, daquelas que ela dava e fazia todo mundo rir junto. Se abaixou só por alguns segundos para ligar as luzes na tomada. Toda sua varanda se acendeu, assim como seu rosto. Suas luzes eram só uma metáfora do quanto ela mesma brilhava.
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A Luz Que Há Entre Nós
ContoMurilo é um pré-vestibulando que está arrancando os cabelos por não saber quando (ou se) vai conseguir fazer sua prova de vestibular no meio da pandemia. A sensação que ele tem é que passou o ano inteiro estudando a troco de nada e, verdade seja dit...