ESTRANGEIRA

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Esther Gothel sentou-se em um banco ao fundo da suntuosa catedral de Paris, Notre Dame. Massageou seu tornozelo direito com cuidado, observando o pequeno inchaço que se formava. Provavelmente o tempo no submundo a deixou enferrujada demais para proezas físicas como escalar beirais de pedra lisa de palácios. Ela chegou a perder seu capuz no processo, e teve sorte de não ter perdido também seu punhal.

— Maldita ventania, era um capuz tão bom... — Olhou em volta, para as pessoas que ocupavam a igreja aquela hora. A maioria pedintes ou peregrinos que buscavam refúgio do vento frio que a essa altura soprava violentamente lá fora. Pensou em afanar um capuz que pudesse substituir o seu, mas dificilmente encontraria um tão bom entre aqueles pé-rapados.

O barulho de passos metálicos batendo contra o chão de pedra chamou sua atenção; alguns guardas se movimentavam ao redor da igreja, e através da porta Gothel pôde entreouvir a conversa deles. Aparentemente, o velho tolo já havia colocado todos os homens em seu encalço.

"Desgraçado... Será que ele me viu?" — Gothel se esgueirou pelas sombras das enormes pilastras que circulavam a nave da catedral, a fim tanto de se esconder quanto de se aproximar dos guardas para melhor ouvir o que acontecia.

— Aquele velho é maluco! — Resmungou um dos guardas — Nos mandou atrás de um fantasma!

— Olha pelo lado bom, pelo menos não temos que ficar no palácio da justiça aturando ele.

— Sabe, quando se ordena uma busca geralmente se dá pelo menos uma descrição do que se está buscando. Eu não sou pago pra ficar acalmando as paranóias de um velho senil, tô indo é tirar um cochilo!

— Tá louco? Se descobrem, te prendem e talvez até te executem!

— Só se você contar. Divirta-se procurando pelo ladrão imaginário do ministro. Eu é que não vou participar dessa palhaçada.

A bruxa sorriu, triunfante. Isso significava que não havia sido vista, afinal. Isso a permitiria tomar outro tipo de abordagem... Saiu das sombras, caminhando tranquilamente até o altar, onde os outros civis estavam. Olhou com desdém para a figura da Virgem santa e seu filho agonizante antes de fechar os olhos e simular uma reza. Estava na cidade a dois dias, e a quantidade de informações que havia conseguido simplesmente por "rezar" naquele altar era quase um milagre por si só.

O nome de Claude Frollo circulava amplamente em Paris. Ele era detestado e temido por quase todos, conhecido por sua antipatia por imigrantes, em especial ciganos. O escândalo mais recente em seu nome envolvia sua obsessão por uma cigana chamada Esmeralda, que sequer estava mais na cidade. Tudo havia começado com uma dança no Festival dos Tolos, e rapidamente escalou para um incêndio que quase tomou toda Paris.

Ela havia sido a mais notória, mas não a única mulher em quem o velho ministro tentou pôr as mãos. De tempos em tempos ele criava algum tipo de interesse doentio em uma, e o resultado era sempre o mesmo: um fracasso retumbante. Seja pela fuga da mulher em questão ou até mesmo sua morte, o patético juiz quase sempre incendiava alguma coisa em suas tentativas frustradas de romance. Observando o curso da história, Gothel já podia dizer o quão previsível era o homem, e começou a arquitetar seus próximos movimentos.

Salvo poucas exceções, a maioria das mulheres que se tornaram alvo de Frollo eram ciganas. Isso significava que ou seu ódio pelo povo cigano era na verdade desejo reprimido, ou que ele tinha um fetiche muito particular em relações de poder. Ou ambos. De qualquer forma, era a brecha que a bruxa precisava. Apesar de ser excepcionalmente boa em invadir lugares e roubar coisas valiosas bem debaixo do nariz de seus donos, desta vez seria necessário um pouco mais de... Finesse.

Em sua longa existência, reis e rainhas já prostraram os joelhos perante seu charme arrebatador. Além de jovem, bela, e inteligente, sua ascendência entre o povo rom do leste europeu era inegável*, o que tornaria ainda mais fácil o jogo de sedução com um velho juiz que mal conseguia lidar com uma ereção ao ver uma cigana dançar. Tudo o que precisava fazer era aguardar pelo Festival dos Tolos, que convenientemente aconteceria na próxima semana, assim que o inverno se despedisse de vez e desse lugar às temperaturas amenas da primavera.

Hoje, os sussurros que ouviu ao pé do altar falavam do Pátio dos Milagres. Aparentemente, um refúgio cigano em algum lugar do subsolo da cidade, que abrigava o "rei" deles. Levantou-se de sua reza de mentira e ajeitou o cabelo no reflexo do ouro do altar. Encontraria esse rei cigano, se aliaria a ele enquanto fosse proveitoso, e teria em breve teria sua imortalidade de volta. O Deus do submundo iria ter que engolir suas piadinhas sobre idade. De todos os aspectos da morte, Hades era o mais irritante, e ela faria o possível e o impossível para jamais ter que vê-lo novamente. No começo estranhou essa "segunda oportunidade", mas era uma chance boa demais para deixar passar. Hades a garantiu que, se lhe entregasse a Pedra Filosofal, ela estaria livre... E de fato, estaria. Com tal item em mãos, seria ela própria uma deusa entre os homens. Que Hades apodrecesse em seu reino decadente, ela seria intocável. Por hora, tinha alguns assuntos a tratar com o "seu povo".


NOTAS:

*Embora a origem da história de Rapunzel seja alemã, a origem étnica de Gothel nunca foi revelada. Então tomei a liberdade de dar uma a ela. E aqui Gothel é bi porque SIM, nada me convence que um ser imortal (ou quase) vai ser monossexual por toda a sua existência.


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