— Então você também lutou na guerra, Gintoki... Estou certa?
Otose percebeu uma sombra pairar por sobre os olhos rubros de seu funcionário. Sem querer, havia colocado o dedo em uma ferida que mal começara a cicatrizar e o silêncio desconfortável do jovem aparentemente respondia à sua pergunta.
— Se não quiser falar a respeito, não tem problema. – ela disse enquanto separava alguns chumaços de algodão. – Meu falecido marido também lutou nessa guerra, mas no início. Acredito que, nessa época, se muito, você mal teria saído das fraldas... Isso, se você já tivesse nascido.
Interrompeu-se e o encarou para questionar:
― O que está esperando? Isso é pra você tratar seus ferimentos no corpo.
― Já sei. – ele resmungou. – Óbvio que são no meu corpo. Onde mais acha que eu estaria ferido, velha?
― Onde todo sobrevivente de guerra tem ferimentos e cicatrizes... Na alma. Enquanto essa guerra se desenrolou, vi muitos sobreviventes vindo ao meu bar. Feridos por espadas, por tiros, por perdas. – o olhar da viúva se tornou distante por alguns instantes enquanto Gintoki abria a camisa preta danificada para poder começar a limpar aqueles cortes que recebera. – Atender clientes no bar me fez perceber que tipos de histórias eles carregam consigo. Todos nós perdemos algo ou alguém nesse período.
Gintoki aplicava uma pomada nos ferimentos já limpos quando respondeu sem pensar muito, enquanto fazia uma careta de dor:
― E uma parte de nós não perde apenas algo ou alguém, perde tudo e todos.
Otose não se chocou com a afirmativa do albino. Ele estava certo, havia pessoas que perderam absolutamente tudo... Tal como ele. Ela sabia disso, bastava se lembrar das condições em que o encontrara no cemitério naquele dia. O jovem alto e magro que quase sucumbira ao frio e à fome era alguém que possuía cicatrizes pelo corpo, certamente das batalhas em que tomara parte. Mas também possuía cicatrizes em sua alma. Todo sobrevivente como ele as tinha, por mais que tentasse ocultá-las.
― Nem tudo, Gintoki... – Otose disse com suavidade misturada à complacência enquanto apagava a bituca de seu cigarro em um cinzeiro. – Pensamos que perdemos tudo e todos, mas você não perdeu a vontade de viver. Caso contrário, não me pediria por aqueles manjus.
A velha estava certa. Apesar de tudo, ele ainda queria continuar vivo, mesmo achando que morreria no cemitério com fome e frio. Terminou de enfaixar os ferimentos e voltou a vestir a camisa preta e o quimono branco pela metade, enquanto sorria e dava razão à viúva.
Ela era observadora. Parecia uma estudiosa do comportamento humano através do simples ato de atender e conversar com seus clientes. E pelo jeito eram anos entendendo, mesmo que superficialmente, como funcionava a mente humana tanto sóbria quanto bêbada. Seus pensamentos e deduções a respeito de Otose foram interrompidos ao ouvi-la colocar sobre o balcão uma garrafa de saquê e dois copos próprios para tomar a bebida.
― Não há mais nada para a gente fazer por agora. – ela despejou um pouco de saquê em um dos copos e ofereceu a Gintoki. – Parece que vamos ter que deixar o bar fechado este fim de semana até que os estragos sejam consertados.
― Eles pagaram o prejuízo, não? – o albino questionou enquanto olhava para a bagunça na qual ficara o bar, com mesas e cadeiras fora do lugar, além de quebradas e danificadas. – Dá pra consertar.
― Sim, dá. Mas até que se encontre alguém para fazer os reparos, não vai dar pra abrir até pelo menos segunda ou terça-feira.
― Vai deixar de ganhar dinheiro bem nos dias mais movimentados, velha.
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Crônicas de um samurai desempregado
FanfikceApós uma guerra que durou vinte anos, os reflexos ainda são sentidos anos depois de seu final. O encontro entre uma dona de bar e um jovem ex-combatente em um cemitério é o ponto de partida de mudanças para ambos. Aqui começamos as "Crônicas de um s...