Mãe

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No prenúncio da aurora, sustentadas suas mortiças mãos, abriu os olhos sem vida uma última vez e sorriu com lábios rachados, um leve esgar, uma funesta despedida. Dos olhos verteram duas lágrimas amarelas, um choro de vísceras, um recanto desiludido de seu ser, um adeus ao mundo velho, um abraço ao fantasma da morte rondando as paredes do quarto.

À mulher sentada ao pé da cama restou segurar suas próprias lágrimas cristalinas, sinal de que a doença não era sua parceira. Segurou a mão do moribundo e entre soluços despejou uma quantidade abominável de orações, de súplicas e de promessas, mas nada poderia ser feito, o último acesso de tosse trouxe aos lábios catarro em sangue e o último sustento de ar nos pulmões foi libertador. Os céus se abriram para levar a alma, mas essa não passou pelo filtro divino, caiu em debandada para o inferno.

Num mundo em que as almas são sorteadas ao acaso para habitar os recantos celestiais, uma criança que nasceu para sofrer pode alcançar como descanso eterno o fogo do inferno, enquanto um homem de coração ruim pode glorificar a sorte de ver queimar, no alto da glória, almas no tacho da indecência. 

A mãe, telespectadora da espiritual derrocada abriu das veias um grito amaldiçoado! Nesse momento de extrema agonia, a chegada da alma ao inferno convulsionou o corpo ali presente, tragos de sangue e olhos arregalados recepcionaram os últimos segundos de vida, a inexistência entre o céu e o inferno de todas as almas que não hão de encontrar descanso eterno.

Acarinhou o pequeno corpo entre os braços e o enrolou no lençol de linho branco, na perturbação mental umas ideias a tomarem forma, uma possibilidade de reaver a vida a uma criança tão pura e inocente. Com o coração bombeando angústia enfrentou uma árdua caminhada entre os paralelepípedos da ladeira até alcançar seu topo. Todos os habitantes da cidade falavam da bruxa que morava na pequena casa alicerçada ali, dividindo sua localização com a velha igreja abandonada.

O sol estava a pino quando deu com ela, uma cabana caindo aos pedaços, reflexo direto da antiga Igreja de Pedro. Duvidou da existência da famosa bruxa, não havia um único sinal de vida. Baixou seus olhos para as casas lá embaixo, piscou para afastar o suor dos olhos, sentiu vertigem, quando ia provar o gosto do chão foi agarrada por um par de mãos ossudas. Gritou.

“Cale-se, mulher!”. Era uma voz fina, arranhava igual giz em quadro negro, sentiu arrepios até entre as bandas das nádegas. Deu de cara com uma mulher magra, uma fina camada de pele sobre os ossos, um olhar suspenso no ar, uma boca seca acompanhada de um belo nariz empinado. A rigidez da voz não era páreo para sua beleza singular, sorria sem dentes. “O que te traz, criança?”.

Eis que, no momento de fazer o pedido, encontrava-se borrando as calças de medo. Percebeu que ali não era alguém brincando de bruxaria, era uma mulher experimentada, uma que não hesitaria empurrá-la ladeira abaixo. Libertou-se do agarre e buscando coragem do âmago fez seu pedido com voz fraca.

“Quero meu filho de volta!”

“Isso é interessante. Venha, entre para um chá”

Protelou na porta. Um passo para dentro e assinava uma sentença de confabulação com todas as suas consequências. Imaginou se a alma do seu filho valia tanto. Deu um passo para trás, três para frente e ali estava, a casa escura a recepcionou com um forte cheiro de água sanitária e sálvia. 

Era tudo escuro. As janelas estavam pintadas de negro, as paredes dançando com as sombras do fogão a lenha, uma casa espartana, uma mesa de centro, um jogo de chá e uma pia que pingava um líquido escuro. Sentou à mesa, deu um trago na beberagem. Ao redor da casa corria um vento arisco, a fúria do divino abominando o profano. 

Quando deu por terminada a descida, ainda segurava o dedo furado, a assinatura de sangue sobre a folha virgem. Estava feito, o coração retorcia o medo de fracasso, mas seu filho já tinha alcançado as labaredas do inferno, certamente ele aguentaria algumas horas mais. Os olhos agora estavam secos, brilhava ali somente determinação.

“Vá e copule com o homem mais perverso que conhecer”. Essas foram as palavras finais. “Que ele esteja morto”. Essas sim foram as palavras finais. A cabeça rodava em um turbilhão sem fim. Sentia arrepios de frio debaixo do escaldante sol. De goladas matava a garrafa de vinho seco. O sabor grudava na língua, subia pelo céu da boca direto para o cérebro, nublou-o e de posse de uma faca foi em busca dele, o famoso Homem Dezoito.

O conhecido como Homem Dezoito rezava a proeza de já ter enterrado dezoito esposas, assumindo o cargo de criar sozinho suas três filhas. Era bom professor, a mais velha lhe servia a cama de segunda e quarta, a do meio lhe servia a cama de terça e quinta e a mais nova, de sete anos ainda estava aprendendo o ofício às sextas. 

Não era tarefa difícil encontrá-lo. Estava sempre às voltas com a cadela Eva e uma das filhas. Rondava sempre pela escola, pela praça, pela sorveteria e pelos bares. Ninguém se atrevia a mexer com o homem, era forte, com mais de dois metros de altura. Homem Dezoito também poderia ser chamado de Homem Demônio. Diziam que ele tinha feito um pacto com o Capeta e por isso passavam às largas dele.

Estava onde ela imaginou que estaria, sentado folgazão no banco da pracinha onde algumas crianças brincavam sobre a vigilância dos atentos pais. Ancorada aos seus pés estava a filha mais nova, olhando com nostalgia e pouca vivacidade aos que brincavam a poucos metros de si. Meditava em sua mente infantil que a vida não era vida até um coice tirá-la do sossego. “Vá até a venda e me traga uma dose de cachaça. Não demore”. “E o dinheiro?”, perguntou. “Foda-se. Dê a ele um bom chupão. Na volta venha sentar no colo do papai”. A garota saiu, conformada.

A mulher ouvia a conversa com o estômago enojado, perguntava-se o motivo daquele crápula não estar suspenso numa árvore, a língua de fora, os bagos do saco feito comida de cachorro. Olhou o céu, vislumbrou uma sombra ao leste, um pássaro batendo as asas. Soltou um suspiro ao vento e aproximou-se dele, sorridente.

“Quer o que, vadia?”. A barriga deu um tombo. “Podemos falar… em privado?”. O olhar lascivo a lambeu dos bicos dos seios às pontas dos pés. “Claro”. Andaram mata adentro, ele seguindo-a, a mão coçando o membro já duro. 

Conforme ia adentrando a mata ela sentia-se cada vez mais sem forças, esquisita, atordoada. Sentia as pernas tremerem, as mãos suarem, o couro cabeludo coçava, as partes íntimas pegavam fogo. As mãos diminuíam a olhos vistos. “Que diabos?”. Sussurrou. 

O coração da pequena floresta da Praça XV seria testemunha do ato de consumação que estaria a ponto de se dar. Quando o olhou estava do porte de uma garotinha de 12 anos, frágil, esquelética, mirrada, com medo. Aquele monstro iria tomá-la. Uma sensação de traição encheu sua boca.

Não teve tempo de gritar, um apertão e a faca voou longe. Um único rasgo e o vestido era trapo. Os olhos masculinos lambiam a pele lisa, infantil, imaculada, possivelmente ainda virgem. Ao redor o vento fazia seu trabalho em arrepiar a jovem pele e refrescar o toque da mão selvagem. 

Os agarres nos pulsos tornaram-se cada vez mais fortes, então um estalo ressoou no coração da mata, os pulsos eram dois. Os gritos quase infantis foram encobertos pela risada lisérgica dele. A garota foi arremessada ao chão, ele chegou junto, o membro em riste, procurando a vagina pura para a profanação, encontrou com o véu da virgindade e o rasgou com grotesca crueldade. As mãos sedentas tomaram o pescoço enquanto realizava os movimentos de cópula, o ar faltava à garganta da garota. Quando a viscosidade do gozo preencheu o ventre, uma última tentativa de viver saiu em forma de grossas lágrimas, de sangue. 

A alma da malfadada mulher, vendida pela alma do filho, nem tentou alcançar a glória dos céus. Quando saiu da boca tomada de sangue era de um tom púrpura denotando toda sua podridão. Homem Dezoito olhou fascinado a alma rodear seu corpo, como que querendo espancá-lo, até sumir no firmamento do inferno.

Ele levantou-se de cima do cadáver e cuspiu-lhe à face. “Mãe?”, chamou ele pela mulher escondida entre a vegetação, enquanto subia as calças. “Sim”. A mesma voz aguda e ácida já conhecida deixou a face ossuda da mulher, o manto azul-escuro ondulando aos seus pés em movimento. “Filho?”. 

“Mãe… Obrigado!”. Falou ele rindo. “Há tempos não sentia o que era uma garota virgem gemendo entre os braços”. Os olhos dela em fendas. “E as minhas netas?”. Ele sorriu. “Não importa que elas durmam meladas e acordem virgens, eu ainda lembro da forma da boceta delas… Estava pensando em coisas diferentes!”. A bruxa revirou os olhos, enternecida. “Meninos?”.

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