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MUITO BEM, REGINA PENSA, ORGANIZANDO o que precisa fazer numa lista mental antes de começar:

Ela apalpa a gola da camiseta preta e encontra-a vazia; em seguida, passa a mão nos seus cachos curtos e grisalhos, procurando-os por lá e nada achando; é só na última tentativa que ela coloca a mão no rosto, tocando por fim as grossas lentes e a armação na ponte do nariz, e bufa baixinho um palavrão pelo fato de que os óculos estavam no lugar esse tempo todo. Óculos check.

Regina fita a mesa, os olhos correndo pela bagunça característica do móvel utilizado para o trabalho, as refeições e eventuais partidas de dominó. Ela encontra o que estava procurando, por fim, do lado do papel Canson e do carvão. Celular check.

E encarregando-se do último item da lista, a artista caminha até o grande espelho da sala, o telefone em mãos, e sorri observando seu reflexo, vendo se as bochechas e a testa brancas de tom rosado, costumeiramente os lugares mais marcados pelos dedos da artista, estão sem as manchas pretas de carvão. Rosto limpo check.

Com tudo pronto, Regina abre o WhatsApp e navega pelo app, procurando a conversa de Nelson. Não demora até que ela a visualize, já que não faz muito tempo que eles se falaram. Amigos e confidentes, Nelson e Regina se conhecem há mais de quarenta anos, e a convivência por tanto tempo torna difícil a infrequência de seus diálogos.

Clicando na tela com o indicador, segundos transcorrem até que a chamada seja iniciada. Nelson, em contrapartida, demora a aceitá-la, para a exasperação de Regina, que já estava irritada com o homem antes mesmo de planejar telefoná-lo.

Regina murmura sozinha, hábito sempre presente na vida da artista, e resmunga um “se não fosse a pandemia, eu iria pessoalmente fazê-lo atender essa…”

Nelson resolve então conectar-se à chamada, interrompendo a artista em seu xingamento.

— Oi, e aí? — Diz o velhinho, a expressão entediada e um tanto indiferente com a braveza presente no rosto da mulher que lhe telefonara.

Com os cabelos brancos lisos e na altura dos ombros presos num coque frouxo no alto da cabeça — arranjo de madeixas que ês netes descrevem como “penteado de ir ao Starbucks na fanfic” — e a pele branca de tom creme contrastando o castanho quase preto dos olhos de Nelson, o desgosto em ter sido interrompido se mostra com intensidade em seu olhar. Prevendo que o atrapalhara de alguma forma, Regina tem a súbita vontade de dar risada, entretanto ela tenta manter a carranca irritada. A senhora não consegue ficar brava com Nelson por muito tempo, mas gosta muito de fingir que o faz. Sendo assim, ela franze as sobrancelhas e prossegue:

— Que demora para atender, hein, seu puto? Estava ocupado fazendo o quê?

— Dando uns amassos na minha mulher, até você me atrapalhar, Regina! — Sorrindo de modo falso, ele mostra o dedo do meio para ela, dedo com a tatuagem da letra O, em homenagem a um neto. Enquanto Nelson adicionou tatuagens com o tempo nas mãos e nos antebraços, Regina fechou os braços e a perna esquerda com elas. Ainda há alguns espaços vazios na perna, espaços que a artista teria preenchido meses atrás, já que as sessões com seu tatuador preferido, Henrique, estavam agendadas para maio, mas não as remarcara para manter o distanciamento social e garantindo que as saídas fossem essenciais. Com o dedo do meio ainda direcionado para a câmera do celular, Nelson comenta, azedo: — Muito obrigado!

Só então Regina esboça uma feição de lamento que Nelson, conhecendo-a como conhece, sabe não ser verídica.

— Porra, sinto muito por você, Nelson, sua mulher é uma beleza. Já não sinto tanto por ela, pois você põe muita língua no beijo.

O mistério da (;Onde histórias criam vida. Descubra agora