A VELHICE E AS EXPERIÊNCIAS que ela proporciona são, para Gina, quase que absolutamente brilhantes e vivas: ver as marcas do tempo em seu corpo, junto de suas tatuagens, o branco dos cabelos, o prosseguimento de suas raízes na constituição de seus filhos e des filhes de seus filhos… tudo é extremamente belo, aos olhos da artista. Menos a escassez do sono e o hábito de acordar no cu da manhã, mesmo tendo dormido às três e pouco da madrugada.
— É um caralho de asa… — Xinga ela, apoiando-se nos antebraços e olhando pela janela. O relógio digital mostra que são 06:47 e Regina recorda, nostálgica, da época em que dormia mais de oito horas por dia.
Levantando-se e xingando mais um pouco, costume que só piorou com a idade, a artista inicia a quinta-feira como lhe é de praxe. Ela vai até o banheiro e libera com prazer a bexiga do primeiro xixi do dia antes de lavar o rosto com água gelada e passar um creme. Em seguida, Regina olha para seus cabelos cacheados bagunçados no reflexo do espelho, solta um suspiro exasperado com o estado dos fios, pega os grampos que fica na segunda gaveta do gabinete, prendendo os cachos mais rebeldes da melhor forma que consegue e no processo criando um penteado simples, mas que deixa um caimento bacana nos cachinhos curtos. Por fim, ela se ocupa com a higiene bucal — limpar a dentadura, a boca, colocar a dentadura — e só então sente-se humana o bastante para pôr uma roupa e passar o café.
É bebendo o segundo copo americano do líquido escuro e amargo que Gina ouve Exagerado tocar. Ela se levanta, procurando a fonte de tal tormento aquela hora da manhã, Cazuza que a perdoe, e repara nas muitas notificações do WhatsApp e do e-mail antes de atender a ligação que o identificador de chamadas indica ser de sua neta.
— Alô?
— Oi vó, é a Silvanna.
Regina vira os olhos, segurando-se para não fazer um comentário mordaz tão cedo, e prossegue:
— Oi, Anninha. Como você está?
— Bem, na medida do possível, com essa pandemia e tudo mais. E a senhora, como está? Está se cuidando?
— Tudo certo, estou trabalhando como nunca. Fui dormir tarde ontem a noite, me lembrou dos tempos em que eu era jovem e ficava na gandaia até o corpo falar chega.
— Nossa, vó! — Silvanna se espanta, preocupada. — Eu não acordei a senhora, acordei?
A senhora bufa, o humor ácido cada vez mais desperto.
— Que nada, não importa a hora que eu durma, sempre estou em pé antes das sete. — Só então a velha percebe a atipicidade da ligação de sua neta naquele horário. — Aconteceu alguma coisa?
— Nada sério, é só que não recebi a arte da família e quis ligar para entender o que aconteceu.
Segundos de silêncio se passam até Regina compreender o que lhe fora dito. A artista tem certeza que escreveu o e-mail de Silvanna junto ao de todos os outros. Com o cenho franzido, confusa, e já ligando o computador para confirmar que havia sim mandado o desenho para ela, Gina diz:
— Como assim você não recebeu o e-mail, Anninha?
— É, vó, não recebi. Vi todes no grupo da família falando sobre como ficou incrível e tal, chequei minha caixa de entrada três vezes e não havia nada. Achei até que a senhora estava tirando uma com a minha cara.
Digitando com a maior velocidade que consegue — que não é lá muita coisa, mas dá para o gasto com suas tarefas diárias —, ela desbloqueia o computador e entra na parte de enviados de sua caixa de e-mail, observando quem foram os destinatários e encontrando lá, como se lembrava, o endereço de Silvanna.

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O mistério da (;
Storie breviCom sessenta e cinco anos, Regina esperava fazer arte e vender suas empadas sem maiores complicações, não viver uma pandemia. O distanciamento social a faz adaptar a tradicional foto de família de final de ano, optando por fazer um desenho a carvão...