três.

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FOI COM ESSE E-MAIL QUE Gina respondeu Angélica semanas atrás, e tal correspondência desencadeou mais dezenas de outras, o que as levaram a trocar os números de telefone para conversarem via WhatsApp. O papo tem acontecido numa constante ao longo dos meses, variando de temáticas e de horários. As senhoras compartilham sobre experiências com ês netes, seus gostos por filmes, música, séries e livros, e impressões que têm sobre a vida. Foi um coleguismo que se desenvolveu de maneira ligeira para uma amizade muito bem-vinda, se perguntarem a Regina, ainda mais numa época de pandemia. A artista tem sempre boa companhia para conversar, mesmo que de longe: Nelson, sues netes, a ex-namorada Ivonete, algumes amigues da comunidade LGBTQIA+ além de, evidentemente, ela mesma, com quem dialoga o dia todo. Entretanto, é sempre bom conhecer pessoas e mentes novas. As novidades lhe renovam.

Ao adicionar Angélica em seus contatos, Gina pôde conhecer o rosto da professora aposentada, com seus olhos azuis claros, pele branca de tom creme e cabelos lisos, loiros e grisalhos.

Ê nete notara, em chamadas de vídeo, que a vó fica no celular respondendo mensagens e demonstrara interesse por saber se as coisas estavam só na amizade. Regina brincou, falando que as correspondências eram na verdade sexting, contudo logo esclareceu que não havia conexão o suficiente para ela se sentir confortável para fazer isso e que, para ela, Angélica é só uma amiga.

Em contrapartida, nenhuma das mensagens enviadas por Angélica continha a resposta para a pergunta feita por Regina. O mistério da carinha piscando continuava sem resolução. Gina já cogitara repetir o questionamento, embora tenha achado um tanto forçado e inoportuno para a relação em construção delas, sendo assim, optou por deixar o tema morrer, mesmo com a presença inalterável da curiosidade.

Até que numa terça-feira, que transcorrera sem maiores adversidades na produção de empadinhas e com eventuais conversas entre Regina e Angélica sobre as notícias mais recentes quanto aos resultados das vacinas produzidas pelo Butantan, que a artista recebe uma mensagem:

Angélica: Gina, você foi a salvação da minha pandemia. Com sinceridade, as coisas seriam horríveis sem você.

Regina: Fico lisonjeada, mas posso dizer que você ajudou para que as coisas não fossem tão assustadoras, por vezes.

Angélica: Sim, isso mesmo.

A professora começa a digitar a mensagem e, minutos depois, ainda continua a construir o texto. Observando o “escrevendo…” ao lado da foto de Angélica, Regina tenta não ficar impaciente tão cedo.

— Deve ser assim que mis netes se sentem quando sou eu mandando mensagem —  ela fala, um sorriso brincando-lhe nos lábios.

Assim que Gina lê a frase de Angélica, em contrapartida, seu sorriso se esvai.

Angélica: Eu nunca respondi a sua pergunta, mas a (; era de flerte, sim. A gente podia ir num encontro quando tudo isso passar.

Sentindo um leve desaconchego diante à perspectiva de que o encontro pela professora sugerido é um encontro amoroso, Regina respira fundo, construindo a coragem necessária para abordar a questão diretamente.

Regina: Um encontro amoroso, você diz?

A devolutiva de Angélica chega logo:

Angélica: Sim, sinto atração sexual e romântica por você.

E a artista abaixa o celular, precisando de alguns segundos para digerir a informação e como ela se sente diante disso.

Ela se lembra de uma de suas idas ao oftalmologista, anos atrás, em que teve de dilatar a pupila para um exame de rotina; nessa ocasião, a senhora estava sozinha, o que não lhe é costumeiro nessas situações, sempre acompanhada por netes ou filhos, então teve de enfrentar as ruas próximas a Portugal, localidade movimentada de Santo André, com sua visão meio embaçada e sem senso de profundidade. Devagar e com cuidado, ela caminhou até o ponto de ônibus, porém falhou em identificar no caminho um poste, e deu de cara com ele. A experiência de ter avançado com cautela — mas indubitavelmente avançado em seu trajeto — e depois ser tão bruscamente freada por um poste em sua caminhada lenta traz uma sensação semelhante a que Regina sente agora.

Se deparar com a expectativa de sexo e de relacionamento de outras mulheres para com ela nunca deixou de fazer Regina brecar em seu trajeto, como se um poste se interpusesse de súbito, diante da concepção. Os sentimentos de incômodo e inadequação que acompanham tal pausa também se mostram, nessas circunstâncias. É claro, não há como saber se Angélica tem tais expectativas, mas é inegável a chance de que se ela tiver, Regina poderá não correspondê-las, com a atração sexual e romântica condicionais características da demissexualidade e demiarromanticidade.

Como demiaroace, não há nada que a impeça de transar ou de ter namoros, mesmo com a ausência das atrações, contudo Regina necessita da conexão para se ver tranquila diante da mera possibilidade, conexão ainda não existente com a professora.

A senhora respira fundo, optando pela honestidade, mas sentindo-se diminuta por vivenciar tal experiência sentindo mal-estar e incompreensão, o contrário do que acontece para outras pessoas, que veem a conjuntura como algo tão natural.

Regina: Eu não sinto nada disso por você, e nem sei se um dia vou sentir. Sinto muito, Angel ):

Angélica: Mas pode ser que ocorram, né?

Regina: Sim, mas mesmo que ocorram, não é garantia de que eu vá querer tomar alguma atitude sobre eles, sabe?

Angélica: Eu posso te perguntar novamente pós pandemia?
   

Os sentimentos de Regina estão por todos os lados: ela se sente mal diante da noção de falar não para a amiga agora, contudo dizer sim pode dar a ela uma expectativa que, no futuro, talvez Gina tenha de frustrar. Ela suspira, um pouco triste e um tanto cansada — por Angélica e pelo fato às vezes insatisfatório de ser demiaroace — e responde:

Regina: Claro. Porém, não prometo nada, ok?

Angélica: Ok!

E a artista torce para que realmente esteja.

O mistério da (;Onde histórias criam vida. Descubra agora