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Suzane ainda se lembrava dos abusos que sofrera ao lado do ex-marido já falecido, mas sabia que uma hora ou outra teria de tocar no assunto, e dizer a Pietro o que aconteceu.

Os dois eram tão próximos quando crianças, e agora não passavam de adultos ignorantes com suas próprias responsabilidades.

Pietro e Suzane foram, há muito tempo atrás, grandes irmãos que só faziam se divertir à beça, indo ao cinema assistir aqueles filmes sangrentos de sexta-feira 13.

Ela era uma moça tímida de longas e belas madeixas compridas até à cintura, de olhos grandes e escuros que brilhavam e reluziam intensamente.

Suzane olhava aflita pela janela vendo se o irmão havia chegado, enquanto sentia aquela sensação hedionda pulsando repetidas vezes, como algo inquietante a percorrer suas veias fazendo-as latejar.

Esse algo eram as memórias vívidas vindo à tona naquele exato momento em questão.

A boca e os olhos oscilantes haviam se tornado mais recorrentes.

Suzane então começou a andar sob a impaciência e o nervosismo de não saber ao certo o que fazer dali em diante, como prosseguir em meio ao momento delicado de fragilizada sem ter em mente como levar para frente esta situação, um tanto quanto difícil de se aceitar por completo.

Ela se via a perambular, por todos os cantos num mínimo espaço naquele quarto que, vagarosamente, assumia um toque mais sombrio e obscuro a cada passo, como se tudo à sua volta lhe causasse um certo desconforto, ou talvez lhe fosse apenas impressão.

Mas pouco a pouco, a realidade a seu redor havia de se tornar uma grande escuridão vazia, e sem profundidade, que parecia se expandir consumindo tudo, desde o teto as paredes, até o chão, como uma enorme sombra descomunal que agigantou-se, cada vez mais.

Ela percebeu que, por mais que tentasse se mover, parecia estar paralisada.

Suzane não sabia disso, pois só alguém do lado de fora poderia saber, que ela estaria nitidamente alucinando ao vislumbrar, diante de seus olhos, a figura distorcida do ex-marido.

Ele estava como na última vez, trajando seu uniforme, composto por uma calça jeans escura, e sapatos pretos.

Suzane sentia o coração apertado no peito, tanto que podia jurar que tinha uma espada cravada no lugar.

Seu espírito jamais fora perturbado daquele jeito, dando-lhe apenas uma pequena parte do real medo que estava prestes a vir, naquele momento de puro horror.

Ele começou a se aproximar, cada vez mais perto, e mais perto dela.

Então, com um sorriso maligno, e doentio para com ela, ele mostrava seus dentes que rangiam ferozmente.

Ela tentou gritar, mas a voz não saía de jeito nenhum, e por um breve momento passou a achar que as mãos a estavam enforcando ao sentir sua garganta fechar.

E de repente o ar ficou mais denso, como se uma cortina de fumaça espessa o estivesse carregada, sufocando-lhe mais e mais.

Seu semblante era de êxtase ao parecer feliz em ver seu sofrimento novamente, debatendo-se de um lado para o outro, com sua respiração ofegante aos suspiros que dava.

Aquele olhar fanático, e perverso, em meio á escuridão disforme, era para Suzane uma visão terrível que lhe proporcionava o verdadeiro terror psicológico, vivenciado por dez anos ao lado daquele monstro.

Seu sorriso atônito deformava-lhe a face, junto aos olhos mortos inanimados que formavam um contraste esquisito e pavoroso.

Foi então que Suzane começou a derramar lágrimas de dor e sofrimento, após tanto tempo sendo tratada de modo tão agressivo por parte do marido abusivo.

De repente as lágrimas se dispersaram no ar, dando espaço à imagem atroz do marido que, de um lado da face, se encontrava desfigurado, completamente mutilado, com a pele esfolada, a carne pulsante.

__ Você está feliz? __ perguntou, com aquela voz sardônica, e maliciosa.

__ Você está feliz? __ disse, novamente, elevando sua voz.

Suzane tentou se acalmar, mas aquilo mexeu com ela de maneira tão visceral, como se sua liberdade tivesse sido lhe arrebatada.

Ela lutava para poder fechar os olhos, e lembrar que tudo não passou de um mero delírio seu.

Aquilo fora culpa única, e exclusivamente, do homem que está a perecer em seu devido lugar.

Foi quando uma luz irradiante preencheu sua visão turbulenta de trevas com a exímia glória despertando-a de seu pesadelo irreal.

Aquela luz fora do farol do carro de Pietro, um Ford prata, que estava estacionado em frente a casa.

Suzane logo correra para fora, sussurrando pra si e somente pra si:

"Foi só um sonho Suzane, só um sonho ruim."

Depois da separação, ( que não fora nada amigável ), ela acabou recorrendo ao irmão, Pietro, pois sabia que para com ela ele seria sempre aquele bom rapaz compreensível que a entenderia, e a ouviria como ninguém.

Os pais nunca souberam dos abusos que ela sofrera na mão de seu ex-companheiro, e caso soubessem certamente iriam de conjecturar acerca de ter ficado, mais de dez anos, calada, sofrendo em silêncio, sob total sigilo.

As pessoas são tão cruéis na cidade grande, quando se trata de assuntos como este, elas se vêem no direito de julgar estas da maneira como bem entendem sem se prestarem a encarar de fato o outro lado da história.

Pietro era escritor de Thrillers psicológicos e romances essencialmente policiais.

Autor de grandes livros best-sellers e sobretudo seu irmão.

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