Parte 1 - Capítulo 1

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Os primeiros raios de sol da manhã incidiram na queda de água da Cascata Real, fazendo cintilar cada gota do Castelo de Colmentina de onde Ofélia fora expulsa mesmo antes de nascer. Quem olhasse com atenção veria, através de cada gota de água, vislumbres de torres, muralhas e colunatas de pedra e neblina. Se o sol incidisse num ângulo favorável, veria janelões pontiagudos com vitrais a perder de vista e, através deles, cortinas de ceda, tecidas pelas Aranhas da Madrugada, sacudidas pelo vento, poltronas de madeira talhada por artesãos das Muralhas de Fogo, a luz crepitante de castiçais do Reino do Além, de onde de vez em quando ecoava o grito de uma alma perdida. Quem escutasse com atenção ouviria a música de uma harpa enfeitiçada por uma poção dos Eremitas das Nuvens Altas.

Noutra altura, aldeãos apressados observariam à distância a Cascata imensa, estacariam maravilhados pelo esplendor da corte que os governava, admirariam os cortesãos que entravam e saiam em vestidos folheados, fatos engomados e joias cintilantes, as carroças puxadas por cavalos robustos de pelo luzidio. Antecipariam com borboletas na barriga o dia das Primeiras Chuvas. Todos ambicionavam o poder supremo da corte. Bem, todos exceto Ofélia que, sem saber bem como, tropeçara nele por acaso. Era assim que ela gostava de descrever todo o esforço e abdicação que a levaram até à corte. Um acaso. Pelo menos não seria ela a responsável pela alhada em que se metera.

Contudo, naquele dia, não passavam por ali aldeãos. Ninguém estacou sem folgo ou com pernas trémulas perante a beleza transcendente da corte. Estavam todos fechados em casa, resguardados da peste a que nem o poder supremo da Corte conseguia por fim. Bem... nem todos.

Ofélia acordou naquele dia numa margarida. Estava a ter um sonho maravilhoso com as Nuvens Altas e os líquidos coloridos de várias poções que ela mesma misturava, embalada num sono profundo pelo vento, quando as pétalas da flor se abriram e os raios de sol da manhã lhe atingiram o rosto. O cheiro a pólen amarelo fê-la espirrar. Franziu o rosto.

"Uma pétala branca? Oh não, não, não...", disse, espreguiçando-se, "como vim eu parar aqui?"

"Tu nunca acordas onde devias!", resmungou Calipo.

Ofélia franziu os olhos e com a mão tapou os raios de sol que a encadeavam. Numa gota de orvalho vislumbrou o seu reflexo. Soltou um gemido abadado. O seu cabelo desgrenhado e coberto de pólen amarelo denunciaria imediatamente que tinha dormido numa flor de inverno.

"Oh céus, estou atrasada para as Primeira Chuvas!", exclamou ao observar Calipo.

Calipo vestia um fato majestoso, de um azul acetinado, que o distinguia imediatamente como um nobre, enquanto Ofélia tinha um aspeto... terrível. O seu vestido branco, orvalhado e engelhado, coberto de pólen amarelo e de teias cor-de-rosa das Aranhas da Madruga, mal se distinguia da sua pele esbranquiçada cor de leite. Os seus olhos e cabelos castanhos escuros lembravam-na da madeira de um carvalho velho. O carvalho era a sua árvore preferida e gostava de pensar que eles eram da sua cor e não somente castanhos, aborrecidos e banais.

Ofélia suspirou. Nunca seria uma aia da princesa assim.

"Faltam meses para as Primeiras Chuvas, Ofélia!", informou Calipo, abanando a cabeça, "Contudo já estás atrasada para a corte."

Ofélia observou os girassóis próximos, depois o sol, chegando à mesma conclusão. Oh não!

*

Quando Ofélia chegou à Cascata na Floresta Real, a água corria imensa como acontecia sempre que vinham as Primeiras Chuvas. As gotas de água cintilaram, cada uma delas um labirinto de quartos e salões do castelo de Colmentina. Ofélia ajeitou o vestido novo de cerejeira e sacudiu o pólen de margarida. Suspirou e entrou na gota. A água fria salpicou-lhe o rosto. Lá ia ela.

Danças e Poções - CONCLUÍDAOnde histórias criam vida. Descubra agora