Os dias até ao final do tempo de Ofélia na corte pareciam passar aos pares. Por aquela altura, Ofélia estava tão habituada ao ritmo alucinante da corte, que a eminência do início dos seus serviços na casa de outro nobre, e a possibilidade de abrandar e respirar que com ele vinha e que tanto ambicionara, já não pareciam tão prometedores ou... salvadores. Pelo contrário. Sentia uma onda de angústia e nostalgia soterrá-la mesmo antes de abandonar a corte, como se fosse perder possibilidades a que nunca sequer aspirara. Afinal, o seu coração ainda acelerava sempre que tinha que falar com um nobre, ainda tinha um pequeno enfarte quando via o príncipe Tristan e ainda fazia tudo para evitar cruzar-se com ele. Mas já se habituara à adrenalina que todas essas coisas traziam ao seu dia-a-dia. Aprendera a dominá-la e agora ansiava por provar a si mesma que era capaz de a enfrentar dia após dia. Ofélia não estava segura se não se tratava de um caso de habituação à tortura, uma espécie de síndrome de Estocolmo. A perspetiva fez com que, de repente, a ideia de abandonar o castelo parecesse menos fatídica e mais prudente. Mas Ofélia passara a ambicionar cada dia na corte por motivos que ela própria desconhecia e, apesar de saber que a longo prazo nunca poderia encaixar-se na corte, pela primeira vez sentia que podia, pela primeira vez sentia-se... viva.
*
"Hoje é o nosso último dia na corte", disse o príncipe Tristan perante a chegada do fatídico dia, num tom que pretendia ser animado. Ofélia não tinha a certeza de que fosse na verdade, ou talvez estivesse influenciada pelas suas próprias emoções
Naquele último dia chegaram todos mais cedo. Era o dia da visita do rei e, depois de terem sido enxovalhados pelo rei na sua visita da semana anterior, devido à má preparação dos duques e ais nas apresentações dos convidados recebidos (segundo Mariana contou a Ofélia, pois felizmente Ofélia estava ausente num baile da corte no momento da tragédia), todos – duques, aias, aspirantes a aias e até o príncipe Tristan, que estava hoje destacado para um concílio real dali a uma hora e não estaria presente na visita, tinham vindo ajudar a preparar a visita.
Era uma atitude generosa do príncipe, pensou Ofélia, mortificada ao aperceber-se do curso dos seus pensamentos e baixando subitamente o olhar distraído que observava o príncipe. Mas não era exatamente obrigação do príncipe estar ali, ninguém o julgaria se não estivesse.
Contudo, o monarca já tinha anunciado no dia anterior que viria ajudar, o que só piorou a antecipação de Ofélia que não sabia o que preferia, se a sua ajuda ou a sua ausência. Queria odiá-lo, mas não conseguia. Tinha antecipado este dia com tristeza e ansiedade, com o nervoso miudinho na barriga que crescia de dia para dia ao pensar na corte... ao pensar em Tristan. Lembrar-se-ia ele de Ofélia? Do primeiro encontro de ambos? Ou seria ela apenas mais um rosto fugaz da corte, talvez mais um rosto de uma aspirante mais medíocre que as restantes. Ofélia conteve os seus pensamentos com um gemido de frustração abafado.
O príncipe chegou atrasado naquele dia, como nos restantes. Isso não tinha mudado, observou Ofélia, agradada com a bem-vinda razão para desdém que veio substituir os seus terríveis pensamentos anteriores. Apesar da fatídica generosidade e sentido de dever, o príncipe não estava tão preocupado com a visita do rei como os restantes cortesãos que estariam, de facto, presentes nela.
O nervoso miudinho no estômago de Ofélia intensificou-se quando o príncipe se sentou na poltrona ao seu lado na secretária e lhe pediu que lhe passasse alguns dos pergaminhos. Ofélia sentiu um arrepio quando a mão dele repousou sobre a sua por breves segundos. Era macia e quente, o mesmo calor que Ofélia sentia emanar do corpo dele tão próximo do seu e no qual queria mergulhar. Sentira ele o mesmo? Quereria ele estar ao pé dela ou era simplesmente imaginação sua? Ofélia sentiu um aperto no peito e uma tristeza avassaladora porque nunca saberia... preferia não saber a saber a verdade... Tentou concentrar-se nos pergaminhos que deveria preparar sobre cada convidado, mas a tarefa tornou-se muito difícil com o príncipe a meros centímetros dela. Ofélia antecipara várias vezes, incapaz de controlar os seus pensamentos, a última vez que o veria, antecipara aquele dia final com uma sensação de fracasso antecipado, porque era demasiado tarde. Demasiado tarde para ignorar que o príncipe crescera na sua consideração, para ignorar que o passara a admirar como qualquer outra rapariga no castelo que chamara de tola, para ignorar a frustração que sentia por tê-lo deixado acontecer. Ofélia viu o momento derradeiro a aproximar-se como uma tempestade para a qual não se tinha preparado e que deixaria a nu sentimentos que ela escondera dela mesma, sob várias camadas de confiança fingida e vulnerabilidade disfarçada, tudo para encaixar na corte, tudo porque sabia que ela mesma não chegaria, nunca chegaria. E agora ninguém a conhecia. Não verdadeiramente. E a tempestade tinha chegado, e as suas guardas eram falsas e iriam abaixo de qualquer maneira, ao mero sopro de vento, e no fim, só ela teria de lidar com os destroços da sua passagem. Não estaria lá ninguém para a ajudar a reerguer-se porque ninguém sabia que ela precisaria. Sentia que tinha fracassado, e o pior era saber que nem sequer tinha tentado. Perguntara-se muitas vezes nos dias que precederam se o príncipe simplesmente desapareceria da sua vida como parte de uma miragem passageira, esvanecendo-se de uma forma muito menos dramática do que aquela com que aparecera.
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Danças e Poções - CONCLUÍDA
FantasyOfélia, uma aspirante a aia e aldeã secreta, tem de utilizar as suas poções falhadas para salvar um reino da corte, com a ajuda do príncipe maquiavélico. * Ofélia, uma jovem aspirante a aia, ambiciona ser uma eremita nas capelas das Nuvens Altas e c...