Capítulo I

84 5 0
                                    


Pela primeira vez na vida Celio se encontrava privado de seus sentidos. Desde a infância ele não enxergava mais que vultos e sombras, mas sempre lidou bem com isso pois seus ouvidos, nariz e mãos o faziam saber que estava vivo, que não estava no escuro, mas agora seus ouvidos lhe traíram, seu tato o ignorou, era como se fosse privado da existência, ele fica parado, tenta voltar à si, voltar a realidade mas o seu supervisor vê o sua expressão de pavor e tenta ajuda-lo, quando o seu supervisor toca em seu ombro, ele sente como se encostassem com um ferro quente no ombro dele, o toque arde, assustado ele se levanta, sem ver nada além de vultos, ouvindo apenas sons abafados, pega sua bengala e começa a caminhar à passos rápidos na direção da saída.

O vento em seu rosto incomoda, o sabor do ar é desagradável, tentando esquecer tudo o que estava acontecendo ele se vê andando a passos largos, esbarrando nas pessoas, tão logo começa a sentir pequenos impactos, sua camisa branca se torna semitransparente e mais pesada, assim como sua calça e seus sapatos, era como se tivesse andando debaixo d'agua, tudo aquilo era demais para a sua cabeça, o fato de tudo mudar num instante o assustava, era como se a própria realidade o atacasse. Após andar por algumas horas ele se vê perdido, não sabe mais há quanto tempo está andando só sabe que precisa seguir em frente de alguma forma.

Então tudo para, sua audição volta, o barulho das pessoas e dos carros continua demais para ele, o cheiro da chuva no asfalto se mistura ao de gasolina e invadem seu nariz dando a ele novamente a sensação de estar vivo, de existir, porém sem saber onde está, ele anda naquela calçada para trás e para frente por algum tempo chama por pessoas que podiam vê-lo, mas escolhem ignora-lo, elas viam aquele sujeito encharcado, com uma bengala com um olhar perdido, mas ninguém parecia se importar, era como se o universo estivesse contra ele, até que uma menina, que pela sua voz não parecia ter mais de dez anos, para com um guarda-chuva.

- Moço, você tá perdido? Você é cego? – pergunta a criança com sua voz aguda, ela parece mais curiosa que preocupada e mesmo estranhando a eloquência e limpidez da voz daquela menina ele responde.

- Sim, eu tô perdido, pode me dizer em que rua eu estou? - pergunta ele um pouco confuso.

A criança olha ao redor e não vê nenhuma placa, da alguns passos até a esquina e no próximo quarteirão também não há placa.

- Moço, eu não sei que rua é essa, mas eu moro aqui perto, se a gente for até a minha casa meu pai pode te ajudar. – sem esperar uma resposta a criança pega na mão dele e começa a puxa-lo meio sem jeito e ele, sem ter o que fazer, à acompanha.

Eles andam por quase dez minutos e ele não tem ideia de onde está, não reconhece o chão da calçada nem o som dos carros, tudo o que sabe é que talvez pudesse voltar ao seu trabalho com a ajuda do pai da criança e antes que possa se dar conta da distância que andaram, ela para, abre a porta e chama pelo seu pai, ele ouve os passos dentro da casa se aproximando dele e pelo ranger das tabuas pensa ser um homem grande.

- Pai, esse moço é cego e tá perdido, pode ajudar ele? – pergunta a criança.

- Entre, minha filha, vá se secar! – diz o homem num tom imperativo e prossegue – onde você quer chegar, amigo? Onde é a sua casa? – ele pergunta num tom simpático mesmo preocupado com sua filha.

- Eu trabalho na Hoffman Investimentos, se puder me dizer em que rua estou eu posso chegar lá sozinho – diz ele tentando soar gentil e não tomar o tempo daquele homem.

- Não é longe daqui, eu te dou uma carona até lá. – diz o homem pegando um casaco e avisando que já voltava. Ele dá alguns passos para perto de seu carro – por aqui.

Celio segue o som da voz dele e entra na porta do outro lado, senta-se no banco que se encharca absorvendo a agua das roupas dele e fica em silencio enquanto o motorista olha aquela cena e pensa em falar alguma coisa mas Celio parecia estar tendo um dia ruim e a última coisa que precisava era ouvir algo do tipo, ele dá a partida no carro e acelera.

O Cego e a SerpenteOnde histórias criam vida. Descubra agora