Prólogo

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29 de dezembro de 2095

Os últimos 15 anos não haviam sido fáceis, nem um pouco. Viver por mais de uma década como viúvo era difícil, uma luta diária contra a saudade, a tristeza e a vontade de morrer. Mas Taehyung havia feito uma promessa ao amor de sua vida e não poderia não cumprir.

E, por mais complicadas que as coisas fossem, era um homem de palavra. Tudo o que prometia para si, cumpria. E prometer para Jungkook havia sido uma promessa pessoal e não falharia.

Ano a ano sentia o peso do envelhecimento recair sob sua saúde, que apesar de ter sido sempre uma boa aliada contra o preconceito, agora estava precária. Não eram as dores comuns aos idosos somadas às doenças próprias do fim da vida. Havia dores existenciais também, dores não nomeáveis que dia a dia lhe apertavam mais.

Por um lado, sentia medo de morrer, mas por outro, aguardava ansiosamente pelo seu fim terreno. Dentro de si vigorava a certeza de que a morte acalmaria as dores de sua alma que erroneamente alguém nomeou como luto.

Taehyung sabia o que era luto e sabia que o que sentiu nos últimos anos estava longe de ser apenas um "luto complicado", como os teóricos gostavam de chamar. Em toda a sua história de vida, lidou com as perdas, desde as mais simbólicas como as mais concretas também.

Sabia o que era perder alguém, no pacote do envelhecimento, a perda de entes queridos e amigos memoráveis estava incluso. Sabia muito bem como era a sensação de uma pessoa tão estimada não estar mais presente em seu círculo social. Doía muito. Apertava e, por vezes, lacerava.

Também sabia o que era perder simbolicamente algo importante, como a certeza de que a morte vinha um dia sem se saber quando. A sua certeza de inviolabilidade e imortalidade lhe foi retirada aos 17 anos quando soube do diagnóstico do HIV. Naquela época, teve que lidar com a possibilidade de morte a cada nova gripe, a cada novo acometimento à saúde.

Além disso, também conhecia os lutos provenientes de perdas materiais e ideológicas. O carro que fora roubado quando vivia a sua 50ª década de vida. O presidente eleito com a ajuda de seu voto que promoveu mais de dez anos de retrocessos políticos-sociais.

Conhecia o luto por ter que se despedir de animais de estimação, pequenos anjinhos de vida relativamente mais curta do que o apego que as pessoas têm a eles. O primeiro foi Sushi, um cachorrinho que adotaram como primeiro filho do casal. O último, e mais recente, Rámen, o gato velho. Entre o primeiro e último filho do casal, totalizaram-se pelo menos doze animais de estimação. Todos com nome de comida.

Logo, Taehyung, conhecia bem o sentimento que nascia com a morte de algo. E, por isso, sabia muito bem que os últimos quinze anos não podiam ser resumidos ao luto.

Com a morte de Jungkook, não perdeu apenas um marido e um companheiro de meio século. Perdeu também a motivação para continuar e a vontade de viver. Mas, paradoxalmente, com a morte do eterno namorado, ganhou vontade de continuar e motivação para viver.

Dentre todas as coisas que particularizavam a relação do casal, estava presente uma em especial: a competitividade.

Jungkook sempre fora muito bom em tudo o que se empenhava a fazer, fosse um esporte novo ou o preparo de um rámen. E Taehyung nunca aceitou a facilidade do mais jovem em lhe superar em tudo, deste modo, os desafios sempre foram uma marca registrada dos dois.

Minicompetições cotidianas faziam parte da rotina. E por isso o soropositivo estava vivo ainda. Havia transformado a promessa de Jungkook em uma competição de resistência. O outro, de certo modo, havia duvidado da sua capacidade de sobreviver até o 100º aniversário. E ele provaria que o outro estava errado.

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