Era uma bela tarde. Uma daquelas em que os pássaros cantam mesmo depois de quase todo o resto estar se acalmando para a noite que está por vir. Ainda estava clara, o céu ainda estava azul, a cor mais fosca que começa logo depois de o Sol se deitar. Um grupo de pássaros voava ao longe, bem sobre uma nuvem branca que parecia se dissipar. Meus vizinhos estavam estranhamente mais calmos do que o habitual. Algo cresceu em meu peito, e parecia se espalhar calorosamente em silêncio, deixando a ponta dos dedos das minhas mãos, já marcadas pelo tempo, formigarem. Era paz. A maldita paz que procurei durante os últimos quinze anos da minha vida.
Eu fui para a guerra. Vi coisas que não deveria ter visto nem em um milhão de anos. Que não desejo nem ao meu pior inimigo. Amigos meus, que sorriram durante nossos raros momentos longe do perigo enquanto compartilhávamos uma refeição consideravelmente saborosa, estavam largados no meio de um campo judiado pelo poder de autodestruição humano. Seus corpos mais pareciam bonecos macabros. Aquilo sempre me assombra. Somos seres com vida, certo? Somos capazes de amar, pensar, chorar, ter um acesso repentino de raiva... e também somos capazes de ser reduzidos a nada além de um saco de carne, ossos e sangue. Muito sangue. É assombroso como as pessoas gostam tanto de vestir camisas vermelhas, ou então pintar o rosto com vermelho como se essa cor não remetesse nem um pouco ao que somos, um imenso nada. Um universo inteiro pronto para explodir e então se tornar o que vem depois. Mas o que vem depois? O que será?
Morgana não usa vermelho. Nem nos pés, nas mãos, nas pernas, muito menos no rosto. Ela me ama o suficiente para saber que essa cor me provoca de um jeito maligno. Minha esposa tem belos olhos, daqueles bem redondos que nem mesmo a velhice é capaz de deixar caídos. Olhos que brilham como se estivessem enxergando estrelas eternamente. Sua boca é consideravelmente pequena em relação ao seu rosto comprido, e seu nariz se destaca no seu rosto oval. Ela me ama o suficiente para me beijar sempre que estamos no mesmo cômodo, independente do quanto estivermos aborrecidos um com o outro. Estávamos nos beijando no momento em que nosso telefone tocou, o que fez com que nos separássemos.
Enquanto largava minha pasta na mesa da cozinha e me encaminhava para o banheiro, Morgana corria para atendê-lo.
— Gustavo! — Ela parecia radiante. Conseguia vê-la diante dos meus olhos, cobrindo o sorriso de que não gosta, mas incapaz de segurar uma expressão de felicidade genuína. — Sim, ele acabou de chegar. Não, ele não vai se importar. Claro que não. Daremos um jeito.
Desfiz o nó da gravata que abraçava meu pescoço, jogando-a de qualquer jeito sobre a pia. Meu reflexo não me agradava nem um pouco. Eu tinha uma expressão permanente de dor, mas era difícil saber ao certo se ela tinha surgido depois da guerra ou se me acompanhava desde o meu nascimento. Minhas sobrancelhas pareciam prestes a se juntar quando me preocupava demais, então provavelmente tinha esse aspecto durante o dia todo sem nenhuma folga. Meu corpo era grande. Tinha ombros largos e altura acima da média, então nos meus tempos difíceis, fui de grande ajuda em combate.
— Eu também amo você. — Era sua deixa. Suas mãos delicadas recolocaram o instrumento de volta no gancho, e em poucos instantes, lá estava ela, parada no batente da porta, alisando nervosamente a saia do vestido que usava. — Meu irmão virá amanhã.
— Ele virá? — Estava genuinamente surpreso.
Morgana e ele não se viam fazia quase vinte anos. Nunca tive um irmão, apesar de ser uma vontade minha desde que me entendo por gente. Eles não brigaram, apenas escolheram diferente na separação dos pais. Ele escolheu morar com o pai, enquanto que ela correu para os braços da mãe. Eles moravam em países diferentes, tinham idades com diferenças gritantes, então rapidamente se esqueceram do carinho que sentiam um pelo outro. Até que aconteceu.
Há dois meses, tentamos ter filhos pela primeira vez. Não que sejamos idosos, mas não somos nem de longe jovens. Não conseguimos, e nem nunca conseguiremos. Minha mulher chegou à conclusão de que tanto temeu desde que passara dos quinze: estava envelhecendo. E ela não queria se reduzir às cinzas novamente sem ver de novo seu irmão. Sem tocá-lo em um abraço carinhoso.
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24 horas
Short StoryA vida não para quando você dorme, ao mesmo tempo em que o mundo não fica totalmente cinza quando você está triste. Alguns de nós sorri, enquanto outros apenas dão suspiros de frustração. Algumas bilhares de vidas se constroem, se modificam e se bif...