Há pânico do lado de fora, além das paredes e também dos muros. Posso ouvir os gritos, a correria, a violência. Mulheres gritam, homens quebram lojas e crianças são pisoteadas. Posso assistir todo o desespero pela janela. Tudo está colorido de vermelho, graças ao nosso céu. Não haverá mais o azul dos dias ensolarados, ou o branco dos dias nublados, o cinzento dos dias de chuva, o preto salpicado de branco da noite, as raras ocasiões em que já foi rosado ou lilás. Sente-se, reze para não ser assassinado ou estuprado. Bem-vindo ao fim do mundo. Apenas respire enquanto pode.
Começou há alguns meses atrás. Havia algo no ar, eu já havia percebido. Meu pai costumava ouvir uma música repetidas vezes no rádio do seu carro. Uma música bonita, que nos traz nostalgia do desconhecido. Ela foi o meu sinal. Era como se sirenes berrantes tocassem no meu estômago, deixando cada um dos meus neurônios prontos para seja lá o que fosse acontecer. Eu sabia que algo estava terminando, que algo grandioso mudaria tudo. Só resolvi ignorar. E então, escutando essa mesma música pela última vez, sentada na beirada da janela do meu quarto, entendo o que ela era.
Meu pai. Não o vi hoje pela manhã. Tudo estava normal bem cedinho, antes mesmo do Sol aparecer. Se não estivesse, ele ficaria em casa. Não que eu acredite que ele iria até mim, que diria que iríamos morrer e queria se despedir e acertar qualquer uma das contas que estivessem pendentes comigo. Para ser sincera, não acredito nem que ficaríamos abraçados enquanto tudo desaparece. Ele apenas trancaria todas as portas e rezaria, pode ter absoluta certeza disso. Mas a questão, é que ele foi trabalhar. Ele saiu nessa manhã horrivelmente pacata, juntou seus materiais de trabalho, ligou o carro e dirigiu até sabe-se-lá-onde. Eu não o veria de novo, porque ele nunca mais voltaria para casa. Não pisaria no tapete da sala, daria um sorriso sem graça para mim e seguiria o seu caminho para o banheiro. Não brincaria com o nosso gato, nem pegaria porções das nossas sobras do almoço. Nunca mais.
Minha mãe também não está aqui. Ela saiu para fazer alguma coisa. Levantou-se um pouco depois do meu pai, e muito provavelmente, acordou-me para dizer que estava saindo. Mas não me lembro de uma só palavra que possa ter saído da sua boca. Quando acordei de verdade, ela já havia ido. Não consegui mandar mensagens para ela, porque aparentemente não há mais sinal em aparelho eletrônico algum. Ela também não limparia os pés no tapete da sala, pegaria nosso gato no colo e o cobriria de beijos. Nunca mais riria de nenhuma das minhas piadas autocríticas ou eu faria alguma brincadeira estúpida, como falar com uma voz engraçada ou gritar de repente, sem nenhum motivo.
Meu gato está escondido. Minha janela é a única que está aberta, e ele não passou por mim para ir para longe. Não quero procura-lo, porque não quero ter a cruel sensação de segurá-lo nos braços e não poder acalmá-lo. É o que eu sempre fiz. Em todos os momentos da minha vida, desde que nós dois éramos apenas filhotes, pude dizer que tudo ficaria bem, que depois de algumas horas ou minutos, ele nem se lembraria mais do motivo de estar tremendo tanto. Dessa vez, ele pode tremer o quanto quiser, afinal não há mais nada a ser feito. O maldito nunca mais vai ver os meus pais, e se houver vida após a morte, não vai entender o porquê.
E eu estou aqui. O cigarro em minha mão está quase no fim, então, quando o momento chegar, não estarei fazendo nada além de apenas puxar fios da manga do meu moletom cinza velho, enquanto observo tudo desmoronar. Os prédios, as casas, os carros, os humanos. Queria ter uma outra música para ouvir, alguma que não fosse o prenúncio disso aqui. Queria uma música que reunisse cada um dos meus momentos em simples três minutos. Não existe nenhuma música assim. Talvez, se tivéssemos tido mais tempo, poderia ter me deparado com uma de madrugada, enquanto buscasse razões para estar viva entre um cantor desconhecido e outro. Não tenho tempo.
Quando eu era criança, costumava acordar com cheiro de almoço no instante em que abria os olhos: a comida que meu pai levaria para o trabalho. Havia barulho de panelas, talheres, risadas baixas e sussurros. Não queriam me acordar antes da hora. Na época, eu sabia que esse era o momento mais glorioso da minha vida. É claro que quando se é criança, esperamos que vivamos pelo menos trezentos anos, mas também é claro que isso nunca acontecerá. E durante esses anos todos, você verá muito mais coisa do que está vendo naquele momento, mas não dá para discutir com a intuição. Eu era absurdamente feliz, ranzinza, satisfeita e insatisfeita na mesma intensidade. Levantava-me da cama, vestia o meu uniforme e calçava minha bota rosa. Meu calçado não fazia parte do uniforme, mas sinceramente, nunca liguei nem por dois minutos para o quão apresentável eu estava. As professoras e a diretora sempre torciam o nariz ao me ver. Sempre gostei de um pouco de atenção.
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Historia CortaA vida não para quando você dorme, ao mesmo tempo em que o mundo não fica totalmente cinza quando você está triste. Alguns de nós sorri, enquanto outros apenas dão suspiros de frustração. Algumas bilhares de vidas se constroem, se modificam e se bif...