Hora de um arrependimento

7 1 0
                                    

Cimento não podia me separar dela, muito menos a porta de madeira sempre trancada, embora fosse pesada e difícil de empurrar. Nada poderia me impedir, nem o mais pesado dos metais ou o mais tóxico dos elementos químicos. Provavelmente se nossa distância fosse de países, viria nadando todos os oceanos por ela. Então, não achem que algo me manteria longe.

Lá estava minha garota. Os cachos cheios e rebeldes, se enrolando em si mesmos, embaraçando-se na ventania do verão que sempre antecede uma tempestade. O dourado de seus cabelos agora meio apagado devido as chuvas pesadas que chegavam devagar. A cor de seus olhos já me conhecidos, idênticos a madeira de uma árvore velha, já judiada pelo tempo. As pequenas pintinhas desenhando um tipo especial de constelação, uma que em nenhum canto de nenhum universo há igual. Algumas estrelinhas maiores e mais sobressalentes que outras, porém formando algo abstrato e belo. Algo antigo. Afinal era o que eu sentia quando olhava para ela. A imensidão de verões e invernos que se passaram desde que o primeiro ser humano pisou na terra abaixo de nossos pés, que agora não passa de concreto velho e rachado.

Talvez nesse mesmo lugar — no nosso lugar —, há centenas de anos ou há apenas dezenas, pessoas morreram por amor, ou pelo menos brigaram. Não temos a certeza sobre o que foi cada coisinha desse nosso pequeno planeta, então talvez pessoas tenham transado debaixo das estrelas que agora nos vigiam e talvez nos julguem, como também podem estar vibrando e torcendo por nós numa intensidade que nos assustaria caso chegássemos a descobrir.

Seus braços são finos e delicados como os de uma princesa. E mesmo assim, conseguem ser capazes de me afastar de qualquer perigo que o mundo possa vir a oferecer. Eles me envolvem como se eu fosse algo precioso demais para andar sozinho pelas ruas. Era o que eu era de qualquer modo, pelo menos para ela. Seus dedos pequenos desenham círculos invisíveis logo abaixo das minhas costas, um pouco antes do meu traseiro. Me pergunto se ela sabe que os está desenhando. Talvez saiba. Talvez sinta como se eu fosse sua tela, sua maior realização, apesar de não ter sido ela a me fazer.

O seu sorriso parece capaz de me jogar no chão se assim requerido. É tão angelical que chega a doer. Dói cada traço meu, estar tão perto assim de algo tão divino. Não há espaço entre seus dentes, todos tão juntinhos quanto nossos corpos estão agora. A pequena covinha me afeta tanto quanto nada mundano afetaria. Aqueles lábios são macios, capazes de me levar ao céu e ao inferno e então de volta até o limbo que vivemos junto aos outros de nossa espécie.

— Senti sua falta, Víbora. — Ela sussurra como se rezasse ou amaldiçoasse.

É impossível não sorrir também, não colar nossos lábios e tornar nossos gostos apenas um.

Ela entrelaça nossas mãos quando dá um passo para trás, girando em seu vestido de festa.

— Deveria ter mudado de roupa antes de vir. Não quero que estrague esse paninho. — Sussurro também.

— Paninho que você adoraria rasgar.

— Sem pensar duas vezes.

Ela deixa seu corpinho de boneca cair sentado num banco imundo bem atrás de mim.

— Achei que fugiríamos hoje. Jurei que iríamos. Queria que fosse teatral. Que você simplesmente segurasse minhas mãos, que meus cabelos simplesmente curtissem um pouco os ventos, se molhassem com a tempestade que está vindo, enquanto correríamos para lugar nenhum e para algum lugar ao mesmo tempo. Simplesmente abandonaríamos todo o nada que temos e recomeçaríamos com todo o pouco. É o que pensei que faríamos.

— Como nos manteríamos, querida? Assaltaríamos alguns lugares?

— Talvez sim. Se você me pedisse, faria sem nem hesitar. Conseguiria uma arma também. Para atirar na cabeça de qualquer um que nos ameaçasse. Você sabe que faria.

24 horasOnde histórias criam vida. Descubra agora