Uma da madrugada, eu estava deitado no sofá, pensando nas coisas, nele e em tudo mais, "já faz muito tempo que ela cortou o cabelo?"
Ela era comprometida quando eles se conheceram, mas ele me disse que gostava de como seus curtos cabelos pretos combinavam com aquele casaco de pele. O amante dela estava longe, ele não perdeu tempo. Eles se toparam bastante, mas acho que nunca deu muito certo. “Eu não posso, perdão”, ela disse. À passante ele escreveu uma carta final e após a despedida, ele desceu a serra.Ele nunca gostou muito de sua cidade natal onde todos o tratavam como um garoto. Uns o ignoravam, e outros se achavam muito importantes quando o cumprimentavam, mas ele sequer lembrava seus nomes. Ele se cansou do desperdício e resolveu mudar as coisas. Ele optou por uma cuba libre, eu nunca esqueceria seu primeiro drink. E naquela secreta madrugada sagrada, ele aabria caminho para si mesmo.
Já era virada do ano, eu estava desempregado na época e considerava deixar a cidade, então resolvi aproveitar o tempo para tirar o pó da maleta de pintura. Mas seria desonesto negar que eu tinha planos que iam além do dever quando comprei meu cavalete. Ela estudava perto da Rua Cláudio Manoel e eu resolvi me ajudar a conhecê-la. Eu armei meu cavalete ao lado do lugar, esperava chamar sua atenção. A multidão se dispersava, ela saiu do prédio e quando me viu, parou na minha frente,
“Oras, quem é o pintor?”
Eu disfarcei o desconforto com um sorriso,
"Gostei do seu nome”, ela respondeu.Nos sentamos numa praça e ela me ofereceu um cigarro.
“Não achei que você fosse aceitar, parece um moço comportado”,
ela caçoou. Eu ri e abri o livro do maldito poeta francês.Pegamos uma mesa numa cafeteria. Como Renoir, eu caminhava por campos impressionistas de rosas e cravos, sentido os embriagantes ventos com gosto de rum vindos da Cuba diante de mim. Companheiros nas artes, nos beijamos à sombra de uma igreja.
Havia música na varanda e assistíamos ao céu estrelado.
Ela começou a dançar e eu assistia as ondas de seu cabelo castanho escuro se movendo ao som do piano. Ela parou, ofegante, e bebeu uma caipirinha, me deu um sorriso. Ela é do tipo ‘no me pasa la cruda’. Eu vi a boemia em seus lábios, mulher de lindo sorriso boêmio. Eu puxei meu caderno e lhe recitei um poema, E as palavras saem quentes, vermelhas como sua camisa.Nós fomos pintar no quarto, Ela tirou a camisa, posou apenas com flores no cabelo, disse “Faça direito”.
Eu tracei sua figura, começando pelos ombros, Desci pelas linhas da cintura, cheguei no quadril e notei suas covinhas de Vênus. No roxo, através do meu respirar, me concentrei em pintar suas orquídeas.Eu passei um tempo com ele nos cafés e galerias parisienses, era poesia e tinta. Nos jardins floridos seus olhos brilhavam lindamente.
Em certo momento me encontrei confusa, talvez por alguma figura passada, talvez por nenhum motivo específico. Só posso ser eu mesma. Eu o agradeci por entender e depois dele passar pelo portão, eu me virei e vi um beija-flor azul pousando em uma das rosas do vaso marrom na minha janela.
Eu e ela esfriamos. E quando tudo enfim desabou por completo, eu me distanciei. Ela disse que teria me dito muitas coisas, mas nunca soube a maior parte delas,
"Eu entendo, mas não quero mais ouvir." O café ficou com um gosto azedo.Eu saí do transe e me levantei do sofá. Ele teria se deitado de novo, mas houve uma mudança de postura. Eu fui até a cozinha com o livro e o abri, tudo foi como música. Cada uma daquelas malditas palavras me empurram, o ordenar desesperado de Baudelaire para que eu me embriague, ordens que compartilhei em uma última carta, e o refrão d’O Repuxo me soa tão verdadeiro e atual que parece escrito para mim, e de mim para você.
Decidido, preparei uma caneca de café antes de partir. Foi o melhor café que já tomei.
Então agora eu estou voltando, eu preciso alcançá-la de alguma forma. Todas as pessoas que eu que eu nunca quis conhecer estão mortas para mim agora. Algumas são hipócritas, outras desprezíveis, mas a maioria nunca foi nada além de passável. Eu já estou caindo na estrada, depois de muito esforço o cavalete coube no carro. Minha revolução ganha. Talvez eu ainda a encontre naquele bar da esquina.