Bairro Ogre e "A Mulher"

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A rua Ogre, conhecida por ser uma das mais perigosas da periferia de Londres, abrigava uma certa criança que costumam chamar de demônio. Diziam-na coisas completamente desconfortáveis o tempo todo, afinal, como poderia uma menina ser abandonada recém nascida conseguir sobreviver? Aquilo jamais seria algo normal, porque desde o seu nascimento em outubro de 1868 que surgira lá sem mais nem menos. Ninguém viu ou sabe contar como, no meio do dia, aparecera uma bebê sozinha. Alguns com dó davam leite, trocavam suas fraldas e roupas, nos dias chuvosos ficava escondida num lugar quente. Foi desta forma que Charlotte conseguiu sobreviver, uma criança de grande inteligência e perspicaz. Os moradores mais recentes diziam ser um demônio ali e não uma criança, afinal mulheres sempre foram destinadas a serem dependentes de pais, maridos e filhos, porém Charlotte não depende de ninguém apenas de si para sobreviver. Ela faz coisas que homens fazem.

Cinco anos. Sabe ler e escrever melhor do que um adulto; joga xadrez e damas, desafiando moradores e sempre vence conseguindo dinheiro para comer. Quando não tinha ninguém querendo apostar, e já não possuía mais o que comer, roubava comida. Sim, era necessário roubar para comer. Era vergonhoso ter de passar por isto, doloroso e bem humilhante. Tudo o que mais desejava na vida era possuir muito dinheiro para viver no bem bom, como dormir em uma quente e confortável cama – não precisa ser espaçosa, sendo gostosa de deitar-se era mais que suficiente. Ficar perto da lareira, beber chocolate quente, vestir calça e camisa de melhor qualidade, e claro, ter muita comida gostosa. Principalmente chocolate. Ainda assim, parece estar bem distante de conseguir o que tanto almeja. Sonhava acordada, mas porque desmaiara de fome e estaria sendo alimentada por uma mulher muito bela. Quando foi que desmaiou, afinal? Não consegue lembrar-se de ter caído com tudo naquele asfalto gélido londrino, certamente havia caído uma garoa fina porque ainda há umidade no local e seu rosto pálido possuía gotas de água fria.

Londres vive preto e branco. Céu nebuloso.

A mulher a pegou para ajudá-la em algum canto e cuidar de sua bochecha ferida, onde escorria um filete de sangue, limpava gentilmente logo após ter entregado comida para a menina. Não era muito, mas o pouco que havia ali era mais do que suficiente para saciar sua maldita fome, sim, maldita. Charlotte detestava isso. Essa vida. Era horrível depender de pessoas para poder se manter viva. Tudo sempre foi bem injusto, por que uns nascem ricos e outros pobres? Deveria haver uma união igualitária, tanto no âmbito social como político e econômico. Assim, ninguém passaria por necessidades tão alarmantes ou morreria de fome e frio na rua por não ter uma moradia decente. Nem mulheres teriam de se prostituir para conseguir comer ou ter um lugar para poder passar a noite. Será que os ricos sabem o que é passar fome? Lógico que não! Eles comem do bom e do melhor sempre! O pão de cada dia, leite, carne, legumes e frutas sempre frescos! Os pobres é quem ficam com as sobras. Para arranjar emprego, se não for capacitado jamais o contratarão. É uma mulher? É melhor torcer para ser, de alguma forma, respeitada por uma sociedade completamente retrógrada e machista. Faculdade? Como poderia conseguir chegar até lá se sequer consegue frequentar um colégio? As duas universidades mais requisitadas de toda a Londres são caríssimas.

Charlotte demonstrava certo abalo ao pensar nisso, fazendo com que a moça que lhe cuidava momentaneamente ficasse preocupada.

-Você está bem? – ela indagou.

-Hm?

Charlotte ergueu sua cabeça para olhar, ainda com o pão em suas pequenas e sujas mãos.

-Sim... – ela murmurou, envergonhada.

-Parece tão pensativa, mas não fique. Você irá para o céu porque é uma boa menina.

Aquelas doces palavras, aquele lindo sorriso... Charlotte a queria tanto como sua mãe para ter sua companhia, sentir seu cheiro e poder conversar. Por que a abandonaram? Seria verdade, afinal, que a pobre garota é um demônio?

JJBA - Sangue Fantasma - Universo AlternativoOnde histórias criam vida. Descubra agora