Capítulo II

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          A noite estava calma, não se via muitas nuvens no céu, com isso dava para ver as estrelas, por conta deles estarem bem longe das luzes da cidade. O local que escolheram para acampar é uma clareira à beira do rio que a família Machado — a família de Daniel, confraterniza no final de semana. Havia uma ponte de madeira com um quiosque na ponta que a família machado e amigos usavam para se banhar no rio. Na escada do quiosque que descia para o rio, algumas canoas amarradas faziam ruídos uma vez ou outra ao balançar na água, o que fazia Daniel apontar o dedo para cima e olhar em volta com uma cara de alerta, movendo os olhos de um lado para outro tentando sugerir um mal à espreita. — São as canoas Daniel — dizia Alana acabando com o clima de suspense que Daniel pretendia forçar.

          Além dos barulhos das canoas batendo umas nas outras, dava para ouvir os sons de alguns animais ao redor da floresta — grilos, sapos, pássaros e, até mesmo o vento soprando as folhas das árvores. O clima estava agradável. O vento que passava pelas copas cambaleantes das árvores, trazia uma brisa fria com cheiro de folhas novas, que batia no chão misturando-se ao cheiro de terra — deixando tudo mais inebriante e agradável — em contraste ao calor da fogueira, que dançava alvoroçada de um lado para o outro.

          — Lembro que estudei algo parecido na aula de psicanálise no semestre passado que se encaixa um pouco com tua história Henzel, do que você falou: se é possível sonhar acordado. O nome é Maladaptive Daydreaming em inglês, se não me engano, quer dizer sonhos compulsivos ou mal-adaptados, seria alguém viciado em sonhos acordados, alguém que fantasia excessivamente durante o dia e deixa de fazer tarefas diárias. Teria origem em um trauma na infância. Mas não sei se faz muito sentido porque você diz que é como uma lembrança, né?

          — Pois é, parece uma lembrança que vem do nada, eu realmente não sei, mas é interessante tua teoria Alana. Vou dá uma estudada nisso, ou procurar um profissional, quem sabe? Será que tem casos como esse que parecem lembranças?

          — Boa pergunta. Não sei te dizer.

          — Ia contar da sacola branca assombrada de serapilheira vazia em formato de cachorro que mexeu a pata traseira me chamando para trás de um lote de madeira quando eu era criança, lá na serraria do meu tio no interior de Samaúma em uma ilha que não coincidentemente se chama Ilha, onde fui passar as férias. Mas tua história parece mais intrigante, fiquei curioso. Qual é Henzel? Você foi abduzido mesmo? As Aliens eram gostosas pelo menos? Essas bostas de marshmallow queimam tudo! Onde vocês compraram isso? Cadê a picanha?

          — Na verdade você já contou a história né? E Daniel, você não sabe assar um marshmallow?! Isso que dá as mães mimarem os filhos. Não conseguem fazer a própria comida. Mas falando sério Daniel, chama tua mãe quem sabe ela não passa o marshmallow para o nenenzão dela.

          — Pelo menos eu tenho uma mãe.

          — Puta merda essa foi pesada! — Arregala os olhos Katarina enquanto todos riem.

          — Desgraçado — responde Henzel ainda rindo —, enfim, não sei se fui abduzido cara, é uma boa pergunta. Como eu disse, a lembrança só vai até aí. Não dá pra saber, nem rostos eles tinham e, eu tinha quinze anos quando apareceu essa merda desse lapso de memória ou, seja lá o que isso for. Desde então, acontece raramente e, pensando bem, só lembrei disso hoje quando começaram a contar as histórias. — Henzel franze a testa procurando lembrar se fazia tempo que não lembrava da história dos homens polidos, quando de repente seu pensamento é interrompido por uma voz preocupada:

          — Amigo, será que eles te bolinaram?

          — Ah não cara, meu deus Daniel! — Alana rir alto quase caindo para trás. Está sentada em um tronco de árvore cortada para servir de banco.

          — Amiga já vi vários vídeos de abduções no youtube com cunhos sexuais. Quem sabe né?

          — Ah mano! Daniel vai se ferrar cara! — diz Alana ainda rindo. Então se levanta, vai até a caixa térmica e pega uma cerveja —, aí Henzel abre pra mim por favor.

          — Quer saber vão se foder! — diz Henzel com um sorriso sem graça —, e Katarina cala a boca!

          — Ué, mas não falei nada gente! Que isso! — Logo após Henzel estende a mão e pega a cerveja de Alana, leva a garrafa para baixo da camisa e torce.

          — Aqui, Alana. — Ela agradece e vira-se em busca do seu banquinho de tronco de árvore. Enquanto volta ao seu lugar, Katarina pede uma cerveja e ela gira novamente até a caixa térmica.

          — Aqui oh — Entrega a cerveja à Katarina e senta —, mas é uma boa história Henzel, em alguns momentos fiquei apreensiva.

          Katarina leva a cerveja à boca, engata a tampa ao dente molar, puxando-a para baixo. A tampa sai. — Hum... — acaba ganindo com a tampa da garrafa ainda na boca, ao tempo que levanta o dedo indicador pedindo a fala como quem está em um grande debate, então ela cospe a tampa no chão. — Pode ter sido um sonho que você não lembra logo de imediato, e depois surgiu em sua mente do nada. Já aconteceu comigo, às vezes não lembro do sonho logo quando acordo, lembro depois quando tô fazendo algo aleatório. Acho que isso é comum né? — logo após traga a cerveja com vontade.

          — É... acho que sim, já me ocorreu algumas vezes. Mas sei lá, parece tão vívido, tão real, que parece que aconteceu mesmo, é estranho.

          — Você pode procurar um profissional amigo. Fazer umas hipnoses maneiras, quem sabe algo obscuro e misterioso não se revela. — Daniel dedilha o ar com as mãos na altura do rosto e simula uma cara sombria na direção de Henzel —, um trauma talvez. Hum, vejamos... Sua mãe ou pai batiam em você quando era criança? Porque se eu fosse seu pai, eu descia o cacete em você. Já não te aguento agora imagine quando pirralho!

          — Vai à merda Daniel! — diz Henzel rindo da cara debochada que ele exprime na tentativa de passar um ar sombrio. — Mas sei lá Alana, acho que não tenho maturidade suficiente para fazer esse tipo de coisa: ir ao terapeuta para ele fuçar na minha cabeça fodida e ainda por cima eu pagar por isso. Não me parece muito vantajoso. Falo que vou para pagar de razoável e sensato, mas nunca estou disposto de verdade e, uma hora ou outra ele vai chegar na...

          — Hum entendi! — diz Daniel interrompendo Henzel com uma animação suspeita, como se tivesse desvendado, depois de muitas reviravoltas, quem é o verdadeiro assassino em um livro qualquer da Agatha Christie. — Está com medo que o terapeuta encontre resquício de mágoas do seu ex-relacionamento, que ainda está bem fresquinho aí na sua cabeça, né amigo?

          — É Daniel... — atalha Henzel suspirando e olhando pro chão, tentando suprimir a risada que lhe entalava a garganta —, me pegou! Como você é muito astuto!

          — Ih, vai começar a chorar. Alguém traz uma cerveja para este rapaz urgente! — Grita Katarina levando as mãos à boca em forma de concha. — Tá recente né amigo? Mas pensa nisso não, dá um gole que passa.

ELESOnde histórias criam vida. Descubra agora