Capítulo III

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          Katarina tinha razão, estava recente. Ele tinha terminado um relacionamento de cinco anos com Lilian Langrin, fazia mais ou menos três meses. O término foi tranquilo e acertado. Estavam em uma relação desgastada no auge da juventude, seus vinte e quatro anos. Começaram a namorar cedo, antes de entrarem para universidade. Viram a juventude e a relação passar em rotinas mornas e confortáveis. Perduraram o último ano de relação quase como bons amigos, eles sabiam que já não tinham mais nada a não ser a amizade, embora nem isso conseguiram manter após o término, além do mais, os dois descobriram mais tarde alguns resquícios de arrependimentos que ainda permeavam a ausência um do outro, mas já era tarde demais.

          Era o primeiro término deles e, as primeiras coisas que acontecem na nossa vida são sempre mais intensas. Lilian, era amiga de Alana Mariotto e Katarina Carvalho, que ainda estavam se acostumando à ideia de tê-la só para elas, bem como, de conviver com os dois separadamente. Elas sabiam que nenhum dos dois voltariam atrás, sempre com orgulho na linha de frente como um escudo os protegendo dos pesares agudos que poderiam subjugá-los. Estavam entrincheirados em orgulho, com medo que qualquer remorso sibilante viesse atravessar seus peitos. Cavando cada vez mais fundo, estavam com medo. Todos sabiam que, uma hora ou outra, aquilo que os abrigava não seria mais trincheiras, transformar-se-ia em um poço fundo e sem saída, "um abismo cavado com os próprios pés", como diria um velho sábio e saudoso artista brasileiro. Cartola entendia bem os sentimentos que permeiam as convenções humanas, podemos observar isso em suas letras, e, ninguém poderia negar, Henzel Boldrini e Lilian Langrin, eram mais uma de suas músicas.

          — Meus queridos, já superei faz tempo. — responde Henzel aos ataques ácidos dos amigos.

          — Claro amigo. Nós acreditamos. Não é gente? — Pergunta Katarina dando uma piscadela.

          — Claro amiga! Ele é muito maduro e sem coração. Nem sentiu o término. Um exemplo de psicopata. — complementa Daniel.

          — Claro que eu senti, mas vocês sabem como estava a situação. Era visível, não tinha como continuar mais. Enfim não tô afim de falar sobre isso.

          — Acontece amigo. Nós sabemos, só estamos enchendo o saco um pouco, relaxa. — diz Alana com um sorriso consolador, arqueando as sobrancelhas e cerrando os lábios.

          Alana Mariotto sempre teve certo interesse em Henzel Boldrini antes mesmo dele e sua amiga namorarem, mas nunca teve coragem de confessar seus sentimentos e, logo depois, eles apareceram juntos, então ela perdeu qualquer chance de falar com ele o que sentia. Eles se conheceram nos primeiros dias da universidade por conta de um amigo em comum. Ela era do curso de Psicologia e ele de Filosofia, e querendo ou não, uma hora ou outra, eles iriam se esbarrar em um evento qualquer.

          A primeira vez que trocaram ideias foi em um barzinho perto da universidade, que a maioria dos acadêmicos usavam para dissipar a pressão universitária. Logo ficaram amigos. Alana ainda tinha interesse em Henzel, mas sabia que não era uma boa ideia tentar confessar seus sentimentos agora, pois sabia que os dois estavam fragilizados e, é claro, provavelmente perderia a amiga. Ela sabia que independente de maturidade ou cordialidade, as pessoas não lidam muito bem com esse tipo de coisa, além do mais, ela não sabia se Henzel corresponderia. E se isso não ocorresse, ficaria um clima estranho, e provavelmente ela se afastaria por um tempo para tentar evitar o constrangimento.

          Acontece que Alana Mariotto nunca sabia das coisas e, pensava demais, talvez esse fosse seu problema, o pé sempre no chão, com medo que qualquer coisa fora dos seus planos pudessem fazê-la flutuar e perder o controle. Era o seu maior medo — perder o controle. Nunca tinha atravessado a linha limite que havia traçado a si mesma. Sempre estava comedida e a relutar as ideias estúpidas e bobas que vem à cabeça de vez em quando, como subir à mesa da festa quando se está bêbado ou feliz demais.

          Bom, Henzel Boldrini, já tinha subido a "mesa da festa", ou melhor, o palco de um barzinho lotado e, ainda por cima, literalmente por cima, mostrou a bunda para as pessoas na frente do palco. Claro que não era isso exatamente que havia despertado o interesse de Alana Mariotto em Henzel — bom, pelo menos não totalmente —, mas sim, o modo como ele foi mudando desde que ela o conheceu. Ela tinha certeza que o velho Henzel Boldrini não tinha a mínima coragem de subir em um pequeno palco de um barzinho lotado e ainda por cima mostrar as nádegas, mesmo se estivesse bêbado. Mas o Henzel de agora, tanto tinha coragem, como fez. Não deixava de ser constrangedor, entretanto é justamente isso que desperta interesse das pessoas, não o constrangimento é claro, mas as coisas inesperadas que elas fazem e que nos surpreende, mesmo que isso seja mostrar a bunda em um barzinho lotado.

          — Mas sério Henzel, ainda tô curiosa com a história. Você não lembra se eles falaram alguma coisa? Um som ou ruído? Sei lá. Acho que isso poderia ser analisado através de regressões hipnóticas, seria no mínimo divertido. — diz Alana dando um leve sorriso.

          — ...

          — Henzel? — repete Alana.

          — Henzel?

          Quando Henzel abre os olhos uma luz branca o ofusca, uma luz que vem do teto, mas ele lembra que estava na chácara do pai do seu amigo, acampando. Estava sob o céu escuro, perto do rio Camboriú na pequena cidade de Samaúma no extremo norte amazônida, longe da cidade grande. Não tinha teto nenhum onde ele estava, não estava dentro da casa, muito menos deitado. Ele esfrega os olhos um pouco zonzo enquanto recupera a visão. Se levanta com um pouco de dificuldade e senta.

          — Acho melhor você não se levantar agora. Espere um minuto pelo menos.

          — Mas que merda é essa? Onde eu estou? — diz com os olhos, dessa vez, fechados por conta da luz. Parecia que ele não via a luz a muito tempo, como se estivesse vivido em uma caverna a vida toda —, e que porra de voz é essa? Vocês estão me zoando né? O que foi que colocaram na minha bebida? LSD? Por isso não consigo abrir os olhos? por isso a luz está brilhando tanto? Tira essa merda de lanterna da minha cara!

          — Henzel, seus amigos não estão aqui.

          — Vão se foder! isso não tem graça!

          — Peço que se acalme por mais que isso seja difícil para você. O efeito passará em instantes.

          — Cara vocês me drogaram mesmo? Vocês estão loucos? Se eu tiver um troço aqui? Eu poderia morrer sabia? Puta merda! Eu não tô acreditando! Eu não tô acreditando que vocês fizeram isso! Pra onde me trouxeram? Eu fiquei desacordado por quanto tempo? Ah cara, eu não tô acreditando que vocês fizeram isso!

          — Você não vai morrer. Ninguém vai te machucar.

          — Mas que merda eu já falei pra parar!

          — Você sabe que seus amigos não estão aqui Henzel. Pode abrir os olhos se quiser.

          — Merda isso não é possível. Eu estou sonhando, não é? Acorda cara! Isso é só um sonho! "Você lembra de ter vindo pra chácara com eles. Você lembra de ter montado a barraca." Não é possível.

          Henzel então abre os olhos devagar como se não quisesse enfrentar o que quer que estivesse acontecendo. Quando sua visão se desembaça completamente, imediatamente dá um pulo para trás caindo do retângulo macio em que se encontrava sentado e se arrasta pelo chão com arrepios até a nuca. — Puta merda! Quem é você? O q-que é você? Onde eu estou? Merda! Merda! Merda... Onde eu estou? Eu estava no acampamento a alguns segundo atrás, isso não é possível! Eu tô sonhando cara! Acorda merda!

          — Você não está sonhando.

          — Mas que merda, de onde tá saindo essa voz? Você não tem boca cara! O que é você?! Puta que pariu! Como isso é possível?! Cadê seu rosto?

          — kruk'ch k'ath ikzt zetktzu — a voz surge atrás de Henzel, que se dá conta que tem mais uma daquelas coisas ali na sala, falando uma língua que nunca ouvira na vida.

          — Não. Está tudo bem. Desta vez faremos tudo manualmente — Responde o que está na frente de Henzel.

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