Capítulo I

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          Seja lá o que eles forem, eles são reais, eles existem e isso aconteceu comigo. Já estive na sala branca. Acho que eles não apagaram minha memória direito, porque quando eu fecho os olhos, durante três míseros segundos, eu vejo a sala. Não é algo que me perturba ou me tira o sono, é como se fosse normal, apenas uma memória que surge em um flash, quase como um déjà vu. Uma piscadela e pronto, eu vejo passar toda a cena. Acontece raramente e às vezes é tão rápido que minha consciência quase não acompanha, quase não consegue capturar o pensamento, por pouco não deixa passar e, em um estalo, um segundo depois do ocorrido, é como se ela reiniciasse, então eu lembro de tudo.

          Na sala, quando eu abro os olhos não consigo enxergar direito, é tudo muito claro e brilhante. Uma luz muito forte que vem de cima me ofusca, mas não vejo nenhuma lâmpada no teto, talvez fosse a própria parede emitindo luz, eu não consigo pensar em algo melhor para explicar. Estou deitado, mas não amarrado, embora não consiga me mover — em uma espécie de maca uniforme e maciça como se fosse um divã no centro da sala, grudado no chão. Eu não faço ideia de onde eu estou.

          Não consigo ver nada além de paredes perfeitamente lisas e brancas, tudo é branco. A única coisa que existe além do retângulo branco no chão em que eu estou deitado, é um armário ou painel na altura da cintura de um deles, o da esquerda. Ele está mexendo em alguma coisa que não consigo ver o que é. Está de costas para mim, em frente ao painel ou local onde guarda o que quer que esteja manuseando. É tudo branco, os objetos, o chão e o mais estranho de tudo — eles. Sim, são todos brancos dos pés à cabeça, como se estivessem vestindo uma roupa de mergulho. Essa é a impressão que tenho da pele deles — uma textura fosca e áspera. Eu não cheguei a tocar em nenhum deles, mas eu sabia, dava pra sentir só de olhar.

          Eles não tinham olhos, boca, nariz ou orelhas, nem mesmo vi buracos no local onde era para estarem, era tudo polido como um manequim de porcelana, a única coisa que assimilei era que tinham a altura normal de um humano.

          Um deles está perto e passa de vez em quando pela minha visão periférica, então, vem até à maca. Quando chega, o que eu vejo à minha frente é apenas um rosto sem face, com uma cor de branco que não faz sentido à uma pele ou à um ser humano. Eu nunca tinha visto aquele tom de branco na minha vida. Era como se tivesse uma roupa super justa o envolvendo, mas não tinha contornos de nariz, boca ou olhos, era completamente liso, não tinha como ser um humano vestindo uma roupa, não fazia sentido para mim, não era nada do que eu já tenha visto antes. O mais assombroso disso tudo é que eu não sinto nada quando vejo ele se aproximando, nem mesmo medo, parece que minhas emoções foram arrancadas como quem arranca as vísceras de um porco no abatedouro, eu permaneço ali, estático, paralisado; totalmente esterilizado de qualquer sentimento. Não sei o que acontece depois dessa cena. Na minha lembrança, ou seja lá o que isso for, só vai até aí. Simplesmente acaba, é como se não tivesse acontecido. É como quando você pensa longe e depois volta a si e percebe que estava longe, mas não sabe em que estava pensando e, só se dá conta do que está fazendo quando percebe que está pensando sobre o que está pensando.

          Mas eu sei, eles são reais, isso aconteceu, não tem como minha mente criar essa imagem do nada e colocar como uma lembrança né? Será que isso é possível? Nunca ouvi falar em nada do tipo.

          Um professor de Lógica certa vez perguntou na sala de aula se nós poderíamos dizer algo que não existia. Um estudante logo falou pensando que tinha pegado o professor:

          — Um unicórnio! — O professor então dá um sorriso e continua.

          — Ok, pode até fazer sentido. O unicórnio em si não existe, pelo menos ninguém nunca viu um né? Alguém aqui já viu um unicórnio? Alguém que não estava sob efeito de alucinógenos ou narcóticos, é claro. — A turma rir e alguém responde que não. Então prossegue o professor. — Ora, vejamos, o que faz o unicórnio ser algo que não existe? Além da fantasia, é claro. O que tem de diferente no unicórnio que se destaca, que faz com que ele se desvie da realidade que vivemos?

          — O chifre em um cavalo? — responde um estudante.

          — Isso mesmo, chifres em cavalos não são comuns, não é? Ainda por cima um chifre solitário, isso não é comum nem mesmo aos animais que costumam ter chifres, como em um touro, por exemplo. Todos concordam?

          Ninguém se opõe.

          — Veja bem, chifres existem na realidade né? São reais?

          Novamente ninguém se opõem e todos até riem da obviedade da pergunta.

         — Diria eu, então, que cavalos fazem parte do mesmo caso, não é mesmo? Fazem parte da realidade? Eles existem?

          Novamente todos concordam. Então o professor conclui:

          — Você disse duas coisas que existem na realidade, a única diferença é que você juntou essas duas coisas em uma coisa só, que é o unicórnio, uma invenção. Já perceberam que às vezes, nos nossos sonhos, nós juntamos várias coisas existentes em uma coisa só? Criando outra coisa, montada através da lógica onírica, mas que as parte dessa coisa existe na realidade? Ou seja, até mesmo nos sonhos você não consegue conceber algo que não exista totalmente. Tudo que você vê nos sonhos é uma junção de tudo que você já viu. Às vezes, você sonha até mesmo com pessoas desconhecidas, mas que não deixam de ser várias fisionomias que você viu por aí enquanto andava pela rua. A pegadinha na minha pergunta está em: você não pode dizer algo que não existe. É impossível. Porque se não existe você não pode dizer, até porque você não tem conhecimento do que não existe, pois você não sabe e nem pode saber o que não existe, se soubesse, automaticamente seria algo que existe.

          Quando essas imagens passam na minha cabeça, eu lembro do que o professor disse naquela aula e fico pensando se eu não montei aquilo tudo. Mas é estranho, quando as imagens vêm, eu estou acordado, não estou dormindo ou sonhando, o que me faz crer que não criei elas em um sonho, por ter visto filmes de ficção científica demais, ou sei lá. Me faz crer que é uma lembrança.

          — Cara, tem certeza que esse cigarro aí não é de maconha?

          — Vai a merda Daniel! Vocês que começaram com isso! — diz Henzel rindo. 

          Logo após sopra a fumaça em direção a Daniel que se encontra à sua esquerda de frente para fogueira, que hora ou outra, estalava fazendo subir algumas faíscas e fuligens em contraponto ao sereno da noite breada e pontilhada, com as estrelas do céu de Samaúma.

          — Poxa vida, não é erva. — diz Daniel desapontado e abanando a fumaça da cara.

          — De quem foi a ideia de acampar e não trazer erva? Pelo menos o Henzel não precisa disso pra viajar, né?

          — Há-há, comeu um palhacinho hoje no almoço Katarina? — diz Henzel rindo e entornando a cerveja.

          — Até queria ter comido um palhaço hoje amigo, de preferência um bem bonito, sarado, moreno de olhos claros, mas tá meio difícil, já tô na seca há alguns meses!

          — Meu Deus Katarina! — diz Alana que quase se engasga com a cerveja. Todos riem.

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