Manual da Mulher

Fogo.

Do lado de fora do prédio em chamas já tinha uma multidão, moradores, vizinhos, e também curiosos.

K- Mas que merda foi essa?!
Eu pergunto desesperado, procurando com os olhos alguém que possa me responder.

Noel- Não sabemos garoto...
A voz de Noel corta a multidão, que já estava aglomerada no meio da rua.
- A única coisa que posso confirmar é que começou no seu apartamento.

K- Puta que pariu!
Levo as mãos a cabeça e caio de joelhos, olhando o fogo destruir o prédio aos poucos.

O fogo consumia tudo, sua fome é insaciável, mesmo a metros de distância eu podia sentir o calor infernal que vinha de lá.. e entre vidros estourando, madeiras queimando e se partindo, brasas e fumaça sendo carregadas pelo vento, vejo renovação, acho que essa é a palavra, renovação, o fogo consome o velho para o novo surgi, sabe, nesse momento eu acho que consigo vê a cena pelos olhos de Ella, e realmente, essa paisagem pode ser fenomenal.

K- Sabe velhote, eu tinha coisas importantes lá dentro.
Sinto a mão de Noel apertar meu ombro, um gesto de conforto, pois é a única coisa que me resta, e ele sabe disso.

Noel- O mais importante está aqui fora garoto, e bem seguro do fogo.
Eu apenas encosto minha cabeça sobre sua perna, retribuindo seu carinho.
- Estava preocupado com você garoto, graças a Deus que chegou um pouco mais tarde hoje. Foi um livramento com certeza.

K- Sabe que não acredito nessas besteiras.
Me sento no chão pra aliviar o peso nas minhas pernas.
- Meu dia teria sido perfeito, se não fosse por isso.
Aponto para o prédio em chamas.

Noel- Verdade, isso é broxante.
Sorrimos.

K- Mas pelo menos estão todos bem não é?! Todos saíram?

Noel- Sim, ninguém se feriu, na verdade, eu estava terminando a contagem e checagem dos moradores quando te vi chegando.
Olho para suas mãos e só agora reparo na prancheta que carregava em uma delas.
- Alguns moradores ainda não chegaram do trabalho, e outros estão viajando, mas o resto com certeza já está aqui fora.

K- Pelo menos dos males o menor.

Mas por um breve instante eu penso ter escutado algo, um pedido de socorro, mas só que sem palavras, um latido, me concentro mais um pouco e tudo ao meu redor parece ter ficado em silêncio, como se eu tivesse apertado a tecla "mute" no controle do planeta, somente eu e a muralha de fogo, então posso escutar mais nitidamente, um latido abafado, ficando minha visão consigo enxergar uma silhueta na minha janela, a silhueta de um amigo que nunca te abandona.

O que me faz lembrar da minha vizinha de frente, Joana.
Uma mulher de idade avançada com cabelos longos e grisalhos, que ela exibe com orgulho quando fala do seus tempos de ouro como atriz de novelas, simpática, meiga, muito educada, e uma ótima cozinheira, desde que me mudei pra cá, onde ela já estava a 15 anos, ela faz questão de ao meio dia dos domingos me trazer um prato com uma receita diferente, e eu nunca experimentei uma que não gostasse.
Mas o que me fez ligar Joana, aquela silhueta na janela foi uma peculiaridade chamada Tick.
O vira-lata de Joana é um verdadeiro carrapato que a segue a todo momento, sério mesmo, você nunca vai ver Joana sem o Tick e vice versa, se ela sai do sofá para a cozinha ele vai atrás, da cozinha para o quarto a mesma coisa, ele até toma banho junto com ela, mas é um amor de cachorro, leal, um amigo fiel.
As vezes Joana troca sua ração por jujubas, ou pior, troca seu próprio remédio pra diabetes por calmantes, consequência da fase inicial da doença de Alzheimer, surtos bem leves, as vezes ela esquece o nome de alguma gravura do seu livro de receitas e vem correndo até o meu apartamento para que eu a lembre, o mais engraçado é que toda vez que ela bate na porta acaba se lembrando do nome, então toda vez que abro a porta ela solta essa frase:
- Meu querido, agora eu me lembro, muito obrigado, você é a minha luz no fim do túnel.
E eu sempre me divirto com isso, ela é um amor de pessoa, e o Tick só deixa tudo mais engraçado pulando e girando, me fazendo festa.
É isso! Tick, foi realmente um latido que ouvi, mas não pode ser...