Capítulo 1

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Em algum lugar do Triângulo do Sul...

– SOBREVIVI – DISSE ELE, SEM NINGUÉM  PARA OUVI-LO –, mas por que não me sinto vivo? – O vento soprou seus cabelos. Era familiar com o vento, seu único companheiro em tanto tempo. – Escapei, mas por que não me sinto livre?

As águas do lago refletiam a luz dourada do entardecer e o brilho prateado das duas luas. A cidade de Nova Sheratan havia sido construída ao redor de um lago de águas claras que inundava os vales entre as montanhas durante as chuvas de outono. Era uma cidade de muralhas e casas de pedra cinzenta como tantas outras do Triângulo do Sul, invadida pelo crescimento irrefreável da natureza como todas as demais cidades do reino de Gatria. Gigantescas árvores maera estendiam sombras à tarde e gotejavam orvalho sobre os telhados de ardósia ao amanhecer.

Um lugar pacífico e discreto, ideal para um ninguém sem nome. “Sven”, chamava uma voz no fundo da consciência, embora ele próprio não soubesse dizer quando alguém o chamara pelo nome pela última vez. Quase o esquecera após tantos anos abandonado naquela ilha deserta, um lugar nenhum a oeste do Porto do Poente, onde apenas o vento lhe falava.

Caminhando rente à parede, Sven enfiou as mãos nas mangas da túnica em uma tentativa de aquecê-las. Roubara-a do varal de uma casa qualquer. As calças e a camisa ele encontrou em uma tina de roupa lavada, trocando-as pelos trapos com os quais chegara à terra firme. Tirou as botas de um bêbado que dormia na sarjeta antes mesmo do Sol se pôr.

Era difícil roubar comida no mercado quando todos o olhavam com suspeita. Também pudera: a túnica puída, os cabelos longos e sujos e a barba desalinhada o faziam parecer um pobre diabo sem um pedaço terra onde cair morto. “Exatamente o que sou”, constatou ao pensar nisso, permitindo-se um leve sorriso.

Precisava de uma taverna. Talvez pudesse engambelar o taverneiro. Quando  a noite caía, somente  os piores estabelecimentos na  pior  área da cidade permaneciam abertos. As piores tavernas, os piores bordéis. Em lugares assim havia mais chance de que um pobre diabo se apiedasse de outro e lhe vendesse fiado uma refeição de pão mofado e cerveja aguada.

O Sol descia depressa, escondendo-se detrás das montanhas para mergulhar no Azul Infinito. Sven esperou sentado no degrau de um templo de paredes lisas e frias, com uma porta de bronze e uma torre com um sino. Ao que parecia, o povo do oeste ainda prestava homenagem aos Deuses Antigos – mesmo que ninguém se lembrasse de seus nomes –, embora cada vez mais as pessoas abraçassem o culto à Luz. Olhou para dentro, vendo bancos largos dispostos em  fila que  olhavam para um altar. Uma luz branca, alimentada por alguma substância alquímica que Sven desconhecia,  ardia  em  uma lâmpada que pendia do teto.

– Não preciso de deuses ou de luz, preciso de roupas secas, comida e um lugar para passar a noite – disse Sven a si mesmo, soprando entre as mãos geladas. – Se não chamar a atenção, ninguém saberá quem sou eu. Já se passou tempo demais.

A noite caiu e as pessoas se retiraram para dentro das casas. Não era seguro sair à noite. Havia valentões  procurando briga no pequeno porto à beira do lago e encrenqueiros de pior estirpe à caça de presas fáceis nas ruas. Guardas em cotas de malha e armados com porretes faziam a ronda durante a noite, e Sven não tinha dúvidas de que o espancariam se lhes desse qualquer motivo para tanto. Talvez o espancassem sem motivo mesmo, de maneira que era melhor sumir da vista.

Esconder-se,  manter-se  silencioso e discreto. Aprendera isso ainda criança, quando se vira obrigado a roubar comida para que ele e as demais crianças do orfanato onde vivia não morressem de fome. Algumas morriam, apesar de seus esforços.

“Um ladrão não deveria ser famoso”, pensou amargurado. “Não deveria ficar conhecido. Rei dos Ladrões? No que eles estavam pensando?!”. A campainha de bronze na porta da taverna fez barulho quando ele entrou.

Sven & SabineOnde histórias criam vida. Descubra agora