Capítulo 2

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SVEN CORREU FLORESTA ADENTRO, até tropeçar em uma raiz e cair de cara no chão. Ficou ali deitado, lutando para respirar, apenas vagamente consciente de onde estava.

Os sentidos retornavam aos poucos: primeiro a audição – os sons da floresta, insetos e animais distantes –, o olfato – cheiro de folhas e terra molhada –, o paladar – sangue –, o tato – o chão duro  – e, finalmente, a visão. O que os olhos mostraram, porém, foi que aquela não era chamada de a Grande Floresta por mera causalidade.

A floresta se expandia até além do alcance da visão. Árvores tão altas que as copas cobriam as estrelas acima, galhos e raízes que se ramificavam em todas as direções. Para onde olhasse havia apenas a floresta, e mais e mais dela.

“Tudo  bem”, Sven disse a si mesmo. “Sei por onde vim. Posso voltar”. Girou sobre os calcanhares e iniciou o caminho de volta. Sabia o bastante da vida nas florestas para encontrar os próprios rastros. Correra em linha reta e bastaria seguir as próprias pegadas na terra úmida. Assim ele caminhou, caminhou e caminhou de volta à orla da floresta.

Logo percebeu que havia caminhado demais e que as pegadas haviam sumido. “Devo ter me desviado do caminho”. Buscou as estrelas, pois sabia se orientar por meio delas, e caminhou  para onde com certeza encontraria a saída. Novamente, porém, caminhou por uma longa distância e não  encontrou sinal da orla da floresta ou de qualquer ponto familiar.

“Não estou perdido! Posso encontrar o caminho!”.

Uma urgência tomou conta dele e ele começou a correr. Quanto mais tempo permanecesse ali, maiores as chances de que animais selvagens o encontrassem. Manteve os olhos nas estrelas, quando de repente um passo fez com que todas se alterassem. Ele se assustou e cambaleou para trás, e as estrelas se tornaram familiares de repente.

“Que bruxaria é essa?!”. Um passo para frente e as estrelas mudavam. Até a cor do céu parecia outra, ao mesmo tempo mais escura e vibrante. Um passo para trás e tudo voltava ao normal, como se ali houvesse uma porta invisível para um lugar diferente, sob um céu diferente. Subitamente atingido pela superstição e medo do desconhecido, Sven correu em direção contrária, e já não sabia mais para onde estava indo.

Ele caiu e dessa vez não conseguiu se levantar. A fraqueza se espalhava pelo corpo, o ar não chegava aos pulmões. Ficou ali deitado, buscando forças que já não possuía. Para onde olhasse havia apenas a floresta, escura e desoladora.

“Tão cansado”. Um vento frio correu por entre as árvores e atingiu suas costas, mas ele não se importou. Estava cansado demais para se importar. Uma sensação de letargia e estranha calma tomava conta dele. Era agradável. A música era agradável.

Música? Quando  havia começado? Ele não sabia, apenas ouvia as doces vozes que ecoavam pela floresta, invadindo-o, nublando seus pensamentos. Um coral de muitas vozes impossivelmente belas que vinham de todas as direções, tomando conta de seu ser e conduzindo-o a um sono tranquilo de sonhos de verão.

Sven adormeceu e, assim, não  percebeu os vultos leves e silenciosos que se aproximaram dele. Algumas tinham o tamanho de garotas humanas; tão belas, de traços tão delicados e de pele tão clara que até pareciam etéreas. Adejavam sobre o ar como se nada pesassem, batendo levemente as asas de diferentes cores e formas. Vestiam-se de um tecido tão leve que flutuava com a mais leve brisa.

Outras, por sua vez, eram tão pequenas que caberiam entre as mãos das maiores. Voavam velozmente, brilhando como vaga-lumes em meio à escuridão da floresta, olhando com curiosidade para o estranho caído. Desafiavam umas às outras a tocarem nele, mas nenhuma se atrevia e assim saíam todas em gracejos e risinhos.

– Outro andarilho perdido no limiar entre Gaia e Arcadia – disse uma das donzelas feéricas, suspirando. Tinha longas asas de borboleta cujas cores mudavam de acordo com a luz. Todas elas tinham compleição esguia e orelhas pontiagudas, e olhos de cores impossíveis.

– Ele não pertence a este lugar – disse outra, enfática –, e suas mãos cheiram a sangue. Deve ser mais um dos homens das cidades.

Mais e mais olhos brilhantes observavam do topo e de sob as árvores. Houve uma exclamação de espanto  quando  se  constatou  que  aquela  criatura  grande,  rude  e malcheirosa deveria ser um dos cruéis homens das cidades. Homens que devoravam a floresta sem nada dar em troca, destruindo-a a fogo e machadadas para alimentar sua ganância.

Criaturas que  se mesclavam às árvores se aproximaram dele, olhando-o com rancor. Também se pareciam com mulheres de tenra idade, embora seus cabelos fossem feitos de raízes e sua pele tivesse a textura de uma folha transbordando clorofila.

– Eles se esquecem de que vieram da Mãe Natureza – disse uma delas –, mas a Mãe os terá de volta em seu seio.

Ela enfiou os dedos na terra e as gavinhas que revestiam seu corpo penetraram profundamente no solo, enroscando-se em meio à infinidade de raízes que lá havia. Essas raízes brotaram do solo e começaram a envolver o corpo inerte de Sven, puxando-o para baixo da terra.

– Pare!

Ela que, até então, observava sem intervir, veio voando do alto de uma árvore, colocando-se entre Sven e as fadas que queriam sepultá-lo sob o solo.

– Por que o defende? – perguntou uma das fadas maiores quando a pequena se manifestou em defesa do homem que dormia. – Os homens não são nossos amigos.

– Este aqui é diferente! Ele me ajudou!

Elas se entreolharam, em dúvida. 

– Ele não parece tão diferente dos demais – disse a fada maior. – Parece tão rude e perverso quanto qualquer um deles.

– Não, você está enganada – insistiu a pequena fada de olhos e cabelos cor de mel, postando-se diante de Sven como se pudesse protegê-lo das outras. – Uns homens maus me capturaram e ele me salvou. Quase o mataram por isso!

As fadas continuavam em dúvida. Um homem das cidades ajudando uma fada? Por quê?

– Bem, não importa – disse a fada maior, respondendo pelas outras. – É noite de luas cheias. Ele está perdido no limiar entre os dois mundos. Jamais conseguirá sair.

Elas se retiraram sem  produzir  nenhum  som,  deixando  a pequena  fada e  o homem adormecido sozinhos na floresta escura e silenciosa.

Sven & SabineOnde histórias criam vida. Descubra agora