5. Vazio

712 42 39
                                    


OBS: esse capítulo contém cenas de violência que pode servir de gatilho pra determinado público. Se for sensível a esse conteúdo, peço por favor que não leia. 

    Macarena's pov

 Há exatamente 1 ano atrás eu estava atravessando aquele deserto, correndo, com Zulema ao meu lado. Hoje faz um ano que ela morreu, seu corpo foi colocado no mesmo lugar onde a filha dela tinha sido colocada, onde ela criticou tanto por não ter sido ao menos um lugar digno.

 Desde aquele dia eu estou fugindo da polícia, não tive a menor possibilidade de fazer um acordo ou algo assim, soube que Triana e Goya tinham pego prisão perpétua, o que seria de mim se fosse pega pela polícia? Zulema ficou e me deu a oportunidade de fugir dali. Não consigo esquecer as coisas que ela me disse naquele dia, não teve coragem de dizer olhando em meus olhos, mas eu pude sentir o tom de despedida nas palavras dela e aquilo realmente me quebrou.

 Vivemos 2 anos juntas dentro daquele minúsculo trailer, nos adaptamos fácil àquela vida, não se compara ao que vivíamos na prisão, a caravana realmente se tornou um lar pra mim. Foi o primeiro lugar que me senti em casa depois de muitos anos, mas pra Zulema foi o primeiro lar de toda sua vida, depois de anos apenas fugindo, ela sentiu que não precisava mais.

 Por mais que tenha sido bem planejado, o plano de fuga que Zulema havia feito não deu certo por muito tempo, agora tenho que estar em constante corrida contra o tempo e a polícia pra não ser pega.

  Não é simples de falar sobre, na maioria dos dias já não me reconheço mais, tendo que fugir sempre, sozinha. Meu irmão se casou e teve uma filha, ele me quer longe de sua família, diz que não me perdoará nunca por ter me relacionado com a pessoa que fodeu nossas vidas. Na primeira oportunidade que tive de conversar com ele após a morte de Zulema, fez questão de me relembrar de todas as coisas que ela nos fez no passado.

 Depois que saí daquele deserto, demorou apenas algumas semanas e eu tive um aborto espontâneo. Depois de tudo que passei, minha única esperança era poder ver e tocar em minha filha, sentir seu cheiro e ouvir sua voz. Ela era a única que me restava, minha única e última expectativa de poder experimentar o amor novamente. Agora tudo que sobrou pra mim foi a dor, a saudade, e um imenso vazio.

 Os últimos dez anos que eu passei na cadeia, eu tinha no que focar, mesmo que fosse em me manter viva, vivia um dia após o outro. Tinha adrenalina, era menos do que antes da rebelião, mas ainda havia. Na cadeia sempre vai ter aquelas pessoas que querem ser melhor que você e lhe colocar como seus escravos, isso não é de longe um tipo de entretenimento, mas ao menos quando eu estava tentando evitar todos os dias que isso acontecesse comigo, de alguma forma eu me mantinha viva e com um propósito.

Quando saí da prisão tentei viver como uma cidadã comum, trabalhando, fazendo terapia, entre outras coisas do dia-a-dia, fazia um pouco de tudo pra me desapegar de qualquer coisa que me ligasse à uma pessoa específica. Não entendia o porquê de Zulema invadir tanto meus pensamentos, não conseguia fazer nada sem que ela me arrebatasse em diversas imaginações.

 Zahir saiu da prisão antes do tempo previsto, já que ela havia ajudado a polícia em algumas investigações e tinha apresentado bom comportamento. Isso foi algo que me deixou genuinamente surpresa. Se apenas me dissessem que ela tinha passado dez anos sem tentar fugir já me deixaria surpresa, mas cooperar com a polícia não fazia muito o tipo dela. A partir daí eu já pude perceber que ela estava diferente, óbvio se passou uma década, ninguém se mantém da mesma forma durante tanto tempo, mas é Zulema.

 Nossa "relação" dentro da prisão depois da rebelião não tinha sido amigável, mas também não era das piores, ela não tentou me matar e nem eu tentei matar ela. Dentro dos nossos padrões de relação, já podemos chamar isso de amizade. Nesse ponto eu já não sabia o que sentia por ela, ódio já não descreve bem meus sentimentos, amor muito menos.

 Quando tive minha liberdade, percebi que estar fora não era mais minha definição de liberdade já que eu me sentia vazia. O ápice disso tudo pra mim foi alucinar com Zulema, naquele ponto eu não entendia meus sentimos, estava mesmo sentindo falta dela? Depois de ser presa, o momento que eu mais almejei era poder sair dali e não olhar pra Zulema nunca mais na minha vida, mas aqui fora eu consegui entender o meu sentimento por ela. Se trata de dependência, eu me tornei dependente dela, não estava apaixonada por ela nem nada do tipo, apenas me sentia estranhamente dependente dela, mesmo com toda nossa toxicidade, isso me mantinha viva. Houve um tempo em que a ideia de um dia matar ela era meu motor, o ódio era o meu motor. Zulema me disse isso uma vez, esse sentimento era recíproco.

 Quando ela me procurou pra selar uma "sociedade limitada", como ela mesma chamava, foi o momento em que eu percebi que Zulema também se sentia dependente da nossa relação, foi quando eu também percebi que não havia sobrado nada pra nós a não ser nós mesmas. À princípio eu quis resistir, mas a quem eu estava querendo enganar? Deixei que ela me levasse pra onde quisesse, decidi jogar tudo pro ar e fazer o que eu realmente queria.

 Durante os dois anos que vivemos juntas naquele trailer, pensei várias vezes em desistir, em voltar atrás e ter uma vida normal, mas estar com ela era como um vício. Eu tentei, juro que tentei por várias vezes desapegar, mas eu sempre era puxada de volta pra ela. Depois que transamos senti que algo mudou entre nós, mas não foi dito com palavras, pelo menos não até o dia da morte dela.

 Agora me encontro em um poço que sempre parece afundar mais e mais, não consigo me compreender mais, meus sentimentos estão confusos, não consigo dizer se sinto saudade, raiva, tristeza ou se eu simplesmente não sinto nada.

 Não tenho dormido bem desde a morte dela, não consigo parar de pensar no quanto ela era simplesmente imperfeita, ela era imperfeita até em suas perfeições.

  Narrator's pov

 Nessa noite fria, Macarena rola na cama tentando dormir, mas mais uma vez é assombrada por Zulema. Ela decide se levantar já que sabe que não vai dormir mais uma vez, ela veste um casaco, pega a chave do carro e decide dar uma volta pra tentar se distrair do fantasma de Zulema que persistia em persegui-la todas os dias e noites. Já não sente medo de ser pega, pra ela nada faz mais sentido, nada pode machucar ela ainda mais. Macarena sente como se já houvesse alcançado o ponto mais alto de sofrimento em sua vida, ela perdeu absolutamente tudo que tinha, até mesmo a esperança de poder reconstruir sua vida. A troco de que? No final disso, não existe uma razão racional para tal, foi tudo ato do mais puro instinto e o desejo da adrenalina.

 Macarena se lembra todos os dias de que por mais que a morte de Zulema tenha soado um ato nobre, ela sabe que no fundo não há nada de heroico na morte dela. Ferreiro reconhece que Zulema não é o tipo de pessoa que morreria vegetando por causa de uma doença e esse seria exatamente o destino dela.

 Após dirigir sem destino por vários quilômetros, Macarena estaciona em um lugar deserto, escasso de iluminação, a única luz que clareia o local é a luz do luar. Ela encosta sua cabeça no volante e se permite chorar, dizendo através de suas lágrimas tudo que ela não consegue dizer em palavras. Tentando colocar pra fora toda sua dor através daquilo, mas já faz um ano que ela tenta de forma falha aliviar todo o seu sofrimento, ela sente que o buraco em seu peito só cresce. Não tem mais razão pra ela viver, ela sabe que está apenas sobrevivendo dia após dia em função de algo que não volta mais, não consegue pensar em motivos pra seguir em frente.

 Pra ela não tem sentido algum passar o resto da vida atrás das grades, assim como também não tem sentido passar o resto da vida fugindo de tudo e de todos, mas o pior de tudo é não poder escapar do seu pior torturador: sua própria mente.

 Chorando tudo que pode, apoiada contra o volante, ela começa a pensar em várias coisas, desde a morte de seus pais ao caos que está sua vida agora.

 Não podia evitar pensar que Zulema estava com os dias contados, mas não contou pra ela, se manteve por meses sofrendo sozinha. Ela era tão dura consigo mesma, estava destruída, mas não pedia ajuda de forma alguma, era tão solitária na maior parte do tempo. Macarena pensava sobre isso, mas o que mais a machuca é saber que Zulema se foi, mas costumava ser dela, mesmo que não completamente. As duas sabiam que em parte elas se pertenciam.

 Isso definitivamente não é o que ela pediu, mas as vezes a vida vem de fininho pela porta de trás e esculpe uma pessoa e te faz acreditar que aquilo é verdade, que vale a pena arriscar tudo por algo irreal. Zulema não era o que Macarena tinha pedido e sendo honesta, a loira abriria mão de tudo que ela teve só pra ter a chance de poder recomeçar e reescrever um final para ela mesma.

 Quando Macarena consegue controlar seu próprio choro, ela olha pra fora, através da janela e não há nada nem ninguém próximo ao carro dela, apenas longos quilômetros de areia e uma estrada desgastada a sua frente. Ela abre o porta luvas e passa longos minutos encarando o revólver prateado ali dentro, até que decide pegar para confirmar se está carregada. Com a arma em mãos, ela se encosta no banco do carro e fecha seus olhos, respira fundo várias vezes, a cada vez que ela inala e exala, sente um peso enorme em seu peito. Macarena nunca imaginou que a vida dela fosse ser tão curta muito menos que fosse acabar assim.

 Existe uma crença de que toda nossa vida passa diante dos nossos olhos quando estamos prestes a morrer, mas mesmo agora, a única imagem que corre na mente da loira é o rosto de Zulema. Ela se sente amaldiçoada por se sentir assim. Nesse momento ela sente que está tão destruída quanto a mais velha estava há um ano atrás, talvez até mais quebrada que ela. Ela não pode confiar em absolutamente ninguém, a polícia está oferecendo uma bolada como recompensa pra qualquer um que souber onde ela está, não há pra quem ela pedir ajuda, mesmo que quisesse. Ela está sozinha, mais do que jamais esteve.

 Ferreiro abre seus olhos e seu olhar vai em direção a arma que está em suas mãos em seu colo, ela leva o cano da arma até sua própria boca e tenta apertar o gatilho, ela tenta, tenta novamente, mas não consegue, acaba caindo de novo em uma crise de choro. Até que em um ato de coragem, ela coloca o cano da arma apontada pra sua têmpora e atira sem pensar, em um movimento rápido e certeiro, seu braço cai sobre o banco do passageiro e ela morre na mesma hora, com os olhos abertos.

 Suicídio sempre foi algo que esteve fora da lista de causas de morte que Macarena imaginava que teria, mas isso foi em uma outra época, quando ela tinha perspectiva de vida, quando ela tinha família, quando ela era capaz de amar e ser amada. Morrer em um banco de carro, sabendo que irão passar muito tempo sem encontra-la e que quando encontrar, não vão cuidar do corpo dela e que não irá ter um funeral digno é algo que ela nunca pensou que pudesse acontecer consigo, mas agora isso tudo não tem importância, afinal ela está morta e não há ninguém pra sentir a falta dela.

 Talvez em uma outra vida ela possa reescrever a sua história, fazer tudo diferente e viver todos os amores e desamores que ela não foi capaz de viver nessa vida. Talvez em uma outra vida ela possa ter um final feliz.

NOTAS DA AUTORA:

Esse capítulo foi completamente diferente do que eu tô acostumada a escrever, não foi fácil, mas consegui fazer. 

ISSO É UMA OBRA FICCIONAL, SEMPRE TEM UMA SAÍDA, PROCURA AJUDA PROFISSIONAL, PELO AMOR DE DEUS!!!

One Shot's - ZulemaOnde histórias criam vida. Descubra agora