CAPÍTULO DOIS

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Dedicado aos leitores que já viraram amigos:

tempstade

Junior_Lopes_03

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Rosa está faminta, é perceptível. Ela e a mãe devem ter deixado de comer para trazer isso aqui para o Roberto. Dou uma das minhas bolachas para ela, que sente fome demais para recusar, desejo melhoras para o Roberto e sigo o meu caminho.

Eu adoro observar as coisas, e vou olhando para as casinhas enquanto passo pela estradinha de barro. Algumas parecem que despencarão com um simples olhar enraivecido, quem dirá quando der uma chuva grossa. Sempre que dá uma tempestade, nós fazemos mutirões para reconstruir as casas caídas. 

Às vezes, me pego pensando, por que nossas vidas estão organizadas dessa forma? É sempre um dia após o outro. Podemos até pensar no amanhã, mas pensar no depois de amanhã já é tempo demais. Muita coisa pode acontecer até depois de amanhã. Não dá para fazer muitos planos e nem ter muita perspectiva. Obviamente, eu não divido esse tipo de pensamento com ninguém.

Penso no mundo, esse círculo pequeno com quase 2000 pessoas. Ainda bem que não existe mais gente do que isso. Eu não consigo imaginar onde caberíamos se houvessem mais de nós. Esse círculo é todo cercado por uma floresta, e sua organização fica mais fácil de entender se o imaginarmos dividido em duas partes: o lado direito, onde a floresta é toda aproveitada, onde ficam os seringais, a lenha, as minas e as árvores frutíferas; e o lado esquerdo, onde nós criamos os animais e plantamos as coisas que ficam em nossos quintais. Cada pessoa mora do lado onde suas matérias primas ficam mais próximas. Se você cultiva e faz produtos à partir das bananeiras, você mora do lado direito. Se sua fonte de trabalho são os porcos, você mora do lado esquerdo. Quem mora nesse último, por uma questão de necessidade, tem um quintal bem maior. 

Em qualquer lugar, as casas são muito afastadas umas das outras, pois é preciso que sobre espaço para trabalhar. Quanto à floresta, ninguém vai do lado esquerdo, porque é desse lado que fica o riacho proibido, o que acaba tornando a floresta em volta dele proibida também. Por uma questão de precaução, ninguém pisa do lado esquerdo da floresta se não for por uma necessidade extrema – como uma morte ou um desaparecimento. Só os caçadores que frequentam esta parte da floresta, tendo em vista que no lado direito mal existem animais selvagens. Os caçadores e eu, já que eu também preciso desse lado da floresta para poder sobreviver. 

Eu, finalmente, chego até a casa de açúcar. A plantação de cana é tão extensa que vem quase até a lateral da casa e adentra pela floresta. Seu Silvano está colocando o açúcar peneirado dentro dos saquinhos brancos. O melhor açúcar é para as oferendas, já o que nós podemos usar fica em sacos cinza, lá atrás. É pouco e tem que ser dividido para todo mundo.

Seu Silvano está cansado, as pestanas pesam. O rosto foi castigado pelo sol ao longo dos anos. Vou adentrando no terreno dele, timidamente. Os filhos dele, que estão cortando cana lá atrás, não dão pela minha presença. Seu Silvano dá um sorriso exausto e pergunta quantos sacos eu vou querer. Jogo o cesto no chão. 

 – Quantos couberem aqui. – Falo. 

 – Como está a Dona Consuelo? – Ele pergunta, referindo-se à Vovó. 

 – Provavelmente, mexendo um tacho.

Seu Silvano assente com a cabeça e põe os sacos de açúcar dentro do cesto. Vovó e eu temos direito ao açúcar dos sacos brancos, já que isso faz parte da oferenda, porém o açúcar que nós comemos é o do saco cinza, como todos os outros. 

Além do riacho proibido [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora